domingo, 1 de setembro de 2013

UM DOMINGO DE TARDE EM CASABLANCA


Em 1949, tinha treze anos e, com grandes dificuldades de me adaptar á repressiva disciplina estudantil, fora mandado para uma escola particular em Casablanca.
Uma tarde, voltando a casa, deparei-me com um novo cartaz na fachada do teatro municipal, que ficava no meu caminho. Hoje este teatro não existe mais, vítima do “modernismo”. Coisas que não acontecem só na Bahia, acreditem...O cartaz anunciava uma companhia de dança americana, o que na época, era algo inédito em Marrocos. Ao lado, umas fotografias em preto e branco – as coloridas eram raras – mostravam um grupo de negros, homens e mulheres dançando. Sobrara um dinheirinho da curta mesada maternal, suficiente, porém para um assento lá em cima. Veria algo diferente em vez de filme de cow-boy. Hesitei um pouco. Tal empreitada nunca ainda tinha ocorrido na minha curta vida. Acabei comprando um bilhete para a sessão do domingo á tarde, com direito á ficar no fundo da pequena sala.

Foi assim que tive a imensa sorte de poder me vangloriar, durante o resto da vida, por ter assistido a uma apresentação da Katherine Dunham Company. O choque seria determinante para muitas das minhas opções culturais e até políticas. Fiquei deslumbrado, atônito, mareado pela beleza do espetáculo, suas músicas e ritmos, a estética força dos corpos suados, pois era inevitável o impacto sensual do espetáculo sobre um rapaz em pleno desenvolvimento intelectual e físico.
Sai do teatro como bêbado. O mundo de repente era diferente. Minha escala de valores teria que ser questionada e reconstruída. Durante semanas, imagens e sons ocuparam minha mente. Lembro com nitidez que a parte ilustrando o Brasil, com puxada de rede, tinha sido dos momentos mais extraordinários. Curiosamente, nunca ousei confessar a ninguém, amigo ou familiar, aquela ida ao teatro, ato que não deveria fazer parte do universo de um pré-adolescente, mesmo se nunca houvera desabono a tão improvável fato.

Acabo de receber de um velho amigo americano um DC de Eartha Kitt, que em 2006 foi verificar se existem angelitos negros. Enquanto a ácida voz canta Monotonous, leio que ela começou a se projetar com Katherine Dunham e, pela biografia da capa, poderia ter estado no mesmo teatro de Casablanca. As duas foram entre as primeiras mulheres a se empenhar em lutar contra o apartheid ianque
Você pode sentir um nó na garganta ao lembrar algo que aconteceu quase sessenta atrás?  No meu imaginário simbólico, as duas mulheres se juntam a uma terceira mulher que sempre me fascinou, Rosa Parks. Gosto de gente que sabe dizer não a forças aparentemente muito mais poderosas, esmagadoras.
Estas três vitoriosas, sim porque ganharam a batalha, fazem que eu também me sinta um pouco negro.

Dimitri Ganzelevitch                                        Salvador, 21 de setembro de 2008.


PARTICIPAÇÃO DA COMPANHIA DE KATHERINE  DUNHAM
NO FESTIVAL DA HOILANDA EM 1949


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