terça-feira, 3 de setembro de 2013

DO SETE DE SETEMBRO ÁS ELEIÇÕES


MARCELO TORRES 

Até o último dos governos militares, o Sete de Setembro era dia de desfile dos alunos das escolas municipais, em homenagem ao Dia da Pátria. Apesar do caráter imposto, era um acontecimento naquele Junco de outrora, o velho Junco dos dias mortos.  

Éramos, os alunos, obrigados a marchar, se não quiséssemos sofrer punições e ainda ficarmos por todo o sempre marcados com o rótulo de comunista, que era o sinônimo das persona non gratas, aquela gente que não acreditava em Deus e torcia contra o Brasil.

Então desfilávamos, de farda escolar, por entre as duas praças do lugar. E parávamos em frente à antiga prefeitura, e ficávamos em posição de sentido para cantarmos o Hino Nacional, e ouvíamos os discursos de alunos, professores, autoridades.

O discurso mais floreado e pomposo, cheio de palavras rebuscadas, e também o mais longo, de quase uma hora, naquela hora de sol e calor, era o discurso proferido pelo vereador Manoel Vieira do Nascimento, popular Neném Vieira, o intelectual do lugar.

Ele possuía uma oratória que dividia opiniões: enquanto uma parte achava que Neném falava bonito, e era o crânio dos crânios, outra parte achava que ele não sabia de nada, só usava palavras difíceis para impressionar os tolos.

Essa dupla imagem que o lugar cultivava sobre ele acabou por criar um personagem cheio de histórias, piadas, causos e brincadeiras, sendo umas delas amistosas, que o colocavam como erudito, e outras, mais maldosas, que o colocavam como embusteiro.   
----

No bar de Caboquinho, por exemplo, este sempre conta que, certa feita, o Junco recebeu a visita de um alemão, que estava numa mesa do seu estabelecimento, com Neném, o prefeito, o vice e os vereadores.
   
“Papo vai, papo vem” – relata Caboquinho – “depois de duas caixas de cerveja e três garrafas de cachaça, nós todos entendíamos o que o alemão dizia. Só não entendíamos o que Neném falava”, completa.

----

Naquela tarde férvida de Sete de Setembro, nós, os alunos, em pé sob o sol inclemente, desde as duas da tarde reclamávamos de tudo – o atraso, o calor, a sede, a falta de um copo d’água, os discursos.   

Até Paulinho e Luizinho reclamavam, talvez esquecendo que, dali a pouco, seu pai e seu tio seria chamado a fazer uso da palavra e certamente seria mais um discurso longo.

Ao final de duas horas de discursos maçantes, lidos por oradores que tropeçavam nas palavras, eis que o mestre de cerimônias chamou ao microfone o orador dos grandes discursos.

Ao meu lado, Nem de Devaco, o apelidador-mor do Junco, cochichou no pé do meu ouvido, para que nem Paulinho nem Luizinho escutassem:

- Eta, porra! Lá vem Fidel Castro. Estamos fritos, literalmente!

Porém, para o bem de todos e felicidade geral na nação, Neném fez as saudações protocolares, falou algumas palavras difíceis e, em menos de dois minutos, encerrou a fala, sendo aplaudido bem mais do que de praxe.

Minutos depois, o sol sumiu e começou a chover. E acabou o desfile, e agora tudo era farra, festa, folia - todo mundo feliz, se abraçando, pulando e cantando como poucas vezes se viu por ali.    

---

Tempos depois, no mesmo bar de Caboquinho, Telmo de Totó tomava uma cerveja e proseava com Neném Vieira. Era início de um ano eleitoral e já se especulava Josaphat Marinho como candidato de ACM ao governo da Bahia.  

- Neném – Telmo falou – quem é esse tal de Josaphat Marinho?   

- Meu caro Telmo – Neném disse, tragando o cigarro e soprando a fumaça para cima. – Josaphat Marinho é um ínclito, um insigne, um conspícuo cidadão baiano e brasileiro...

No balcão, Caboquinho, que votava contra ACM, esboçou um leve sorriso, com um palito no canto da boca, talvez recordando do dia em que o alemão estava ali, naquela mesma mesa.

Com uma mão, Telmo levou o copo à boca. Com a outra, anotou, num guardanapo, as palavras ínclito, insigne e conspícuo. Depois iria ao dicionário pesquisar o significado.

- Josaphat foi deputado e senador, saiu incólume da vida pública, mas caiu no ostracismo. Agora, com o sufrágio do povo baiano, ele será eleito governador. E este será um motivo de júbilo e ufanismo para todos nós.   

- Estão dizendo que ele vai ser o candidato de ACM, é verdade isso? – indagou Telmo, anotando os termos incólume, ostracismo, sufrágio, júbilo e ufanismo.  

- É verdade, Telmo. Ele vai ser candidato e vai ganhar.  

---

Assim que chegou em casa, Telmo correu ao dicionário e pesquisou, uma a uma, palavra por palavra. Ínclito, insigne, conspícuo – ele viu - eram sinônimos de pessoa notável, grandiosa, ilustre, distinta – e se encaixavam na exaltada campanha que Neném faria do candidato carlista.

Se Josaphat saiu incólume, significava que saíra limpo e isento da vida pública, segundo Neném. Se caiu no ostracismo, como ele disse, é porque passou um tempo esquecido. O sufrágio, ou seja, o voto levaria Josaphat ao governo, um fato que seria – no dizer de Neném Vieira - motivo de júbilo e ufanismo, o mesmo que orgulho e alegria.

---

Chegou o dia das urnas e, ao contrário da previsão entusiasmada de Neném, o sufrágio baiano não elegeu Josaphat, que perdeu a eleição para Waldir Pires.

Telmo, que votou em Waldir, passou a ter duas certezas: a primeira é que nem sempre Neném Vieira acertava as apostas eleitorais; a segunda é que, no Junco, não havia ninguém que soubesse, como Neném sabia, o significado das palavras. (marcelocronista@gmail.com)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts with Thumbnails