Liliana Peixinho,
especial para o Mercado Ético
O cenário da seca no Nordeste é de descaso, abandono e dor. As gestões municipais desconsideram estudos, previsões e diagnósticos já realizados. Resultados de pesquisas científicas, com indicadores de ciclos climáticos, servem mais para justificar a captação de recursos para elaboração de projetos e programas que não saem do papel, do que para ações reais de prevenção e cuidado com a vida. A falta de planejamento fortalece articulações políticas para a liberação de recursos emergenciais alocados em rubricas que deveriam potencializar a riqueza local para a auto-sustentação comunitária. Mas, em campo, a lógica é perversa. Parece ter sido calculada para manter sistemas que não funcionam, como a Saúde, a Educação, a Moradia e a Segurança.
A miséria é alimentada em períodos longos. Programas de benefícios de combate à fome e à miséria absoluta funcionam no curto prazo, mas ao longo dos anos os efeitos são preocupantes, pois inibem a proatividade e a sustentabilidade comunitária. O plantio diminui, os pastos aumentam, a mata some, o lixo aparece, os leitos dos rios somem e o povo, em agonia, faz de conta que vive. A informação circula rápido, de boca em boca, para cultuar valores descartáveis, incentivados por um modelo econômico que confunde crescimento com desenvolvimento a qualquer custo.
É exatamente sobre esse verdadeiro flagelo social e suas consequências que vai tratar a série de sete reportagens especiais Sertão Adentro, realizada pela jornalista e ativista Liliana Peixinho especialmente para o Mercado Ético.
Toma lá, dá cá
“Nunca vi tanto dinheiro solto como nessas eleições! Os caras chegavam era com os pacotes de mil reais, para conversar com os contatos das negociações de voto”. Ouvi essa frase de um senhor, numa conversa informal, com a cara mais cínica do mundo, sorriso largo de quem sabe que não está agindo certo, mas que parecia se justificar na máxima: “oxe, quem está melhorzinho faz assim. Por que eu ficaria de fora?”
Quem entra na conversa com discurso ético é logo cotado como besta e ingênuo. O que as pessoas dizem nas ruas é que não adianta nada pensar assim, porque se um não faz, tem outro, logo alí, já esperando a oportunidade pra fazer, pois a “necessidade é grande e os filhos, aos montes, esperam comida”.
Sobrevivendo mesmo diante das dificuldades / Foto: Liliana Peixinho
A miséria mantém seus elos com a insegurança alimentar, fome, sede, degradação de ambientes… Estão casadas com a falta de aplicação de recursos no combate aos efeitos perversos da indústria da seca. A falta de acesso à água para sanar problemas de perdas na agricultura, comércio e manter as cadeias de produção em torno da Vida é histórica e não basta denunciar, é preciso fechar o ciclo de crimes impunes.
O cidadão, que fortalece o poder político, continua sendo controlado através de contrapartidas eleitoreiras de enganação. E o Sertão é alvo histórico nesse processo. É o bolsa familia e outros sistemas de manutenção da miséria que indica a relação direta entre a falta de produção de feijão, milho, mandioca e outras culturas tradicionais de roças em cidades Nordeste adentro e afora.
“Faz mais de cinco anos que a gente não consegue mais plantar e colher como antes. Agora temos que comprar tudo na cidad:, o feijão, a farinha, o milho e até a mandioca, que a gente sempre fez a tapioca, e agora compramos o polvilho, já refinado“, diz Eroncio Porciono, pequeno agricultor de 54 anos, dois filhos, que recebe o benefício do governo e usa para comprar a cesta básica na cidade. Mesmo assim, ele tem muita dificuldade com tudo, inclusive para manter os filhos na escola, distante do local onde mora.
O Sertão está sedento de cuidados, Justiça, atenção, respeito ao seu povo. Na Bahia, por exemplo, dos 417 municípios do estado, mais da metade, cerca de 240 prefeituras, solicitaram o “decreto de estado de emergência”. Usado mais como ato político eleitoreiro, na criminosa compra de votos, do que para aquilo que o povo necessita, espera, merece e tem direito. As comunidades rurais continuam sofrendo muito com a falta d’àgua e todos os seus ciclos produtivos, interrompidos.
PERDAS EM CADEIAS
Um olhar contextualizado sertão adentro revela que a àgua é utilizada como moeda forte de troca. No curto tempo, na emergência de socorrer a vida, banaliza-se os meios políticos utilizados para, a longo prazo, aumentar o sofrimento nordestino, registrado em lentes ampliadas. Essa resistência aos efeitos negativos da seca alimenta a injeção gorda de recursos em programas como Água pra Todos, Combate à pobreza, miséria dentre outros, espalhados em Ministérios. Os desvios e desperdícios agem rápido no agravamento do quadro de miséria, capitalizado pela velha e perversa política coronelista, que só mudou de nome, como herança maldita entre gerações, de avô pra neto, de patrão para empregado, para a garantia de votos.
As perdas, essas sim, são transversais, e acumulam saldos culturais, pessoais e psicológicas, em cadeias sucessivas. Nesse cenário, mais de dois milhões de pessoas fragilizadas, sem saídas, engrossam as filas para se curvar e receber migalhas, em forma de cestas básicas, remédios, jogos de camisas de futebol, consultas médicas apressadas, para fazer de conta que cuidam da Vida, pendurada em cabides de subemprego.
O grande projeto político é a capitalização dos votos, em sistemas históricos de exploração, herdados do clientelismo, travestido em política inclusiva. Associações, sindicatos, ONGs e coletivos diversos integram um engendrado sistema de captação de recursos, construídos em representações de cargos políticos, para disputar editais forjados, processos seletivos escamoteados, contratação de consultorias técnicas, empregos/cargos arranjados por indicação, num sistema de controle total dos recursos.
O uso da água como moeda de troca é histórico. A capitalização política da miséria nordestina foi exposta por Josué de Castro como “Nordeste inventado”, na obra Geografia da Fome (Castro, 1984). Ao inserirmos a discussão sobre o acesso à água e outros direitos básicos não assegurados, a Bahia, por exemplo, se destaca entre os menores índices de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
Manifestações populares de peso como a mobilização contra projeto de transposição das águas do Rio São Francisco, apoiada por ambientalistas, jornalistas, ribeirinhos, parlamentares, estudantes, igreja e representações comunitárias diversas, vindas em romarias, de todo o Brasil, em outubro de 2005, chamaram atenção internacional sobre o valor e importância da água nas comunidades historicamente excluídas desse direito.
O paradoxo entre o que se diz e que está sendo feito como discurso político empresarial e a realidade apresentada pela falta da ação concreta, in loco, não interessa detalhar, investigar e punir, para não se repetir. É nesse cenário que o sofrimento do nordestino vira tese de mestrado, doutorado, roteiro de filme, peças teatrais, letra de música, enredo de escola de samba, livros, onde a estética está mais para capitalizar a dor do que para encontrar saídas de fato.
(Mercado Ético)
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