DEU NA REVISTA PIAUÍ!
Grafite da discórdia
Um
piauiense virou persona non grata entre os artistas de rua baianos
por Luiza Miguez
Willyams Martins escalou com
agilidade a lateral de um prédio residencial no bairro de Campo Grande, em
Salvador. Eram três da tarde de um dia útil de fevereiro, e ele temia chamar
atenção. Caso fosse pego tirando um pedaço da superfície do muro, a resposta já
estava ensaiada: “Se perguntarem, invento uma desculpa, digo que é um trabalho
para a faculdade, ou que faz parte dos preparativos para o Carnaval.” A
prefeitura instalava perto dali os camarotes do trajeto por onde passariam os
trios. Willyams sacou da mochila um retângulo de tecido transparente e encaixou
na parede, em cima do cartaz de um candidato a vereador. Usando um pincel,
lambuzou uma grossa camada de resina por cima e marcou a hora com o celular.
Nascido há 53 anos em Teresina, no
Piauí, Willyams está em Salvador desde os 22. Já retirou mais de quarenta
fragmentos dos muros da cidade com uma técnica que ele desenvolveu durante o
mestrado em artes. Pequeno e magricela, ele fala lentamente, quase sempre
sorrindo. “Coleto frases que as pessoas escrevem em terrenos baldios, sujeira,
refugos, pichações, grafites”, explicou. “Queria remover isso tudo e levar para
a galeria, aproximar essas imagens do espectador.”
Willyams chama as películas que tira
dos muros de “peles”, fazendo analogia entre a cidade e um “grande organismo
vivo”. A resina de poliéster que ele aplica sobre o lençol de voile permite remover a camada superficial do muro e
pregá-la no tecido. Quando a cola seca, o artista retira cirurgicamente o voile da parede e deixa para trás o muro exposto em
concreto, como uma ferida aberta, sem casca. Depois, ele leva a tela para um
marceneiro, que a enquadra numa moldura de madeira. “É para dar o status de
obra de arte”, explicou.
O piauiense já havia exposto suas
peles na Universidade Federal da Bahia, onde hoje é professor. Mas ganhou
projeção quando, em 2007, recebeu 40 mil reais de uma empresa de produtos
químicos como incentivo para sua produção artística. Depois, venceu dois salões
regionais de artes, ganhando mais 2 mil reais em cada um.
uma
manhã de 2007, Willyams se deparou com seu nome estampado em cartazes. “As ruas
estavam repletas desses pôsteres em muros, postes, até em cima de outdoor. Eram
muito agressivos”, lembrou-se numa conversa recente. O cartaz vermelho
trazia a figura de um cifrão e o seguinte texto: “Willyams Martins, ladrão de
grafite. O artista prático, em um ato de
extremo egoísmo para com a população, arranca das ruas trabalhos de arte feitos
pelos outros, privatiza a obra e assina embaixo. Se não tem talento, não fode
com quem tem!”
Na internet, os ânimos estavam ainda
mais acirrados. No blog Artista
Prático, os grafiteiros questionaram a
remoção de suas obras e o lucro de Willyams com a venda das peles contendo o
trabalho alheio. As mensagens também traziam ameaças. “Em qualquer lugar que
ele andar, pode ser esmurrado e espancado, então, Willyams Martins, é bom tomar
cuidado.”
Entre as reações mais exaltadas,
estava a da artista Ananda Nahu, que teve um de seus estênceis retirados por
Willyams. “Parasita que ganha estuprando obras de arte”, escreveu em seu blog.
Procurada para comentar o caso, ela recusou-se a dar entrevista.
O único grafiteiro que se dispôs a
falar sobre o conflito é Samuca Santos, que não teve nenhuma obra removida.
“Entendo o caráter transgressor da arte de Willyams, mas você precisa pensar na
importância de uma parede grafitada”, disse Samuca, um baiano de 26 anos que
usa os dreads do cabelo presos para evitar o calor. “Tirar a
pintura do ambiente público e levar pa-ra a galeria, um ambiente elitista, é
interromper uma relação de comunicação na cidade”, argumentou. “Há um
código de ética nas ruas. A gente não tem muita grana e fazer grafite é caro.
Aí chega o cara e remove, isso é desrespeitoso.”
Remover grafites das ruas não é
mais a principal atividade de Willyams. Desde o ano passado, tem se
dedicado a retirar as peles de celas de presídios de Salvador – um projeto para
o qual recebeu financiamento de 30 mil reais. Mas os ânimos dos grafiteiros não
arrefeceram. Samuca conhece muitos que, se cruzarem com o piauiense na rua, não
perderiam a oportunidade de tirar satisfação.
Numa atitude conciliatória, Willyams
reconheceu que, afinal, talvez não fosse necessário remover grafites.
“É mais interessante tirar as imagens anônimas dos muros, as pichações que
ninguém vê no dia a dia”, admitiu. “O grafite já é muito potente.” Ele disse
que, por trás das películas que retira, encontra novas camadas, restos de
frases, cartazes publicitários.“Sou um arqueólogo urbano da memória de um tempo
da cidade.”
resina
leva, em média, duas horas para fixar a tinta que cobre o muro no tecido usado
por Willyams. Na tarde quente de Salvador, porém, uma hora e meia bastou.
Enquanto a cola secava, Willyams aguardou num restaurante próximo, apreensivo.
Na volta, topou com dois policiais, o porteiro e uma moradora do prédio olhando
atentamente para o local onde ele havia deixado sua pele. Chegou a pensar que a
tivessem destruído, mas ela estava camuflada sob o tecido transparente.
Willyams aproximou-se rapidamente e
apalpou a película, procurando o melhor local para iniciar a remoção. Com a
ajuda de um estilete, fez uma pequena incisão na lateral da pele, puxando com
força o restante do tecido. Colocou o voile no chão e admirou a imagem do cartaz do candidato
que agora estava em uma de suas telas. Da calçada, a moradora gesticulava com
raiva. “Pode ficar tranquila, minha senhora”, contemporizou Willyams. “Não
estou colocando nada, estou só tirando.”
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