sexta-feira, 3 de setembro de 2010

TRÊS SEMANAS NA SÍRIA(1)

Aeroporto de Damasco (em idioma “Cham” ou “Dimashq”). Fim de tarde. Você chegou sem visto de turista? Logo enfrentará a burocracia local, com fila e pagamento de algumas libras, só para matar a saudade dos inss e outras repartições tupiniquins. Não esquente a cabeça. Em questão de meia-hora já estará saindo. “Taxi! Taxi sir? Welcome to Síria! Taxi?”. Prefiro o velho ônibus que espera encher para enfim abandonar tão aconchegante estacionamento. Na escuridão do cambaleante calhambeque adivinho sorrisos cravejados de ouro. Pago duas moedinhas para uma viagem de uns vinte kilômetros de crepúsculo sobre a planície.


Não parece um ônibus boliviano?

Por acaso este pedaço de passeio seria o terminal? Apeio-me. Pelas ruas mal calçadas – igualzinho a Salvador - arrasto minha mala verde com rodinhas, ô bendita invenção, até o Sultan Hotel. Welcome to Damas! Posso ser franco? Duvido que algum sultão tenha passado uma só noite em tão básica hospedagem. Mas o hotel é limpo, silencioso, o pessoal amável e a localização ideal. Apesar da noite escura e ruas idem, irei até a esquina comer um pedaço de frango assado acompanhado de uma piscina de suco de laranja antes de cair na cama. Tomorrow is another day.
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A Síria é palco de uma rivalidade proverbial entre Damasco, ao sul, e Alepo, ao norte, que disputam o título de Cidade Mais Antiga do Mundo. E haja maiúsculas! Entenda-se: cidades com mais tempo habitadas. Portanto, lembrar Babilônia, Efese ou Tihuanaco não vale. Eu tinha uma fixação sobre este país desde as primeiras visitas à Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa, quando longamente admirava, na parte oriental, as belíssimas lâmpadas de vidro do século XIV, com dizeres esmaltados do Alcorão. Mas talvez nunca tivesse ido sem a presença de um casal amigo, diplomatas por dois anos em Alepo. A vida tem dessas coisas...
Por onde começar meu modesto relato de tão fascinante terra? Vamos colocar, desde já, que se trata de um povo acolhedor, discreto e de uma honestidade totalmente surreal. Que tal sugerir a Brasília mandar por longa temporada a família Sarney, Maluf e os quarenta mensaleiros do PT e do Dem? Talvez entendam enfim que roubalheira pode comprar vinte carros importados e blindados, mas não terão um sono mais leve.
De noite, fresquinho. De dia, lá quando o sol está zenitando, calor seco e resseco, mesmo neste princípio de maio. Cuidado com sua pele, seus lábios. Começarão a sofrer em poucas horas. Senão impecáveis, as ruas são bem mais limpas que as nossas, o povo silencioso apesar do trânsito com perfume a diesel e do drim-drim das bicicletas.
Costumo levantar bem cedo, impaciente de novas descobertas. A direção só pode ser uma: Old Town. Pois é, aqui inglês se fala, se o árabe não lhe for familiar. A cidade velha está encerrada nas muralhas romanas como o corpete que asfixiava o corpinho de nossas bisavós. Muralhas fartamente restauradas ao longo dos séculos.
 A cidadela e entrada do souk Hamidieh

Lá se encontram maravilhas seculares senão milenares que valem a viagem, qualquer que seja o ponto de partida. Passando por um imenso portão, entro numa larga rua coberta que já faz parte do souk. Trânsito automóvel, proibido. Tô gostando! De cada lado, lojas e mais lojas, quase sempre de roupas ou sapatos. Pelas vitrines entupidas você terá uma boa idéia da sofisticação feminina. Chador e caftan. Muita seda, muito bordado, muito ouro, muito brilho. Sherazade ao alcance de todas.


 Tudo para seu harem!

Como em Istambul, Cairo ou Marrakesh, permanece o princípio do bazar, concentração comercial, aquilo que nossos empresários imaginam ter inventado sob a etiqueta de shopping-center, mas que existe desde a Antigüidade. Planejados por esmeros urbanistas – vias amplas cortadas por ruelas perpendiculares – os souks de Damasco impressionam pela coerência e variedade. Nesta área, roupas e jóias. Mais adiante, móveis e tapetes. Á esquerda quitandas, açougues, especiarias, botecos e cafés. Povo introvertido. Os homens não olham as mulheres, que não olham os homens. Nas encruzilhadas, de traje espetacular, vendedores de xarope de reglissa, prima dos cachus de minha infância em Marrocos, atraem o olhar e os fotógrafos. De tanto ser freguês durante vários dias, acabarei amigão de dois deles.




No último dia, na hora da despedida, um me perguntará “Do you have an e-mail adress?” Assim, num toque de varinha, balança o folclore, mas não cai...

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A cada passo, minha atenção é atraída por uma riqueza de detalhes que me são ao mesmo tempo conhecidos e diferentes. Tenho uma grande familiaridade com a cultura árabe, mas hoje novas facetas perturbam e encantam minha curiosidade. Com a câmera digital sempre pronta, fotografo sem parar. Em vinte dias, mais de mil e quinhentas fotos! Claro que muitas irão para a lixeira. Mesmo assim, o que sobrou ainda dá para fazer uma enciclopédia! Mas atenção: homem só pode fotografar homem. Que nenhum se atreva a dirigir seu objetivo para o sexo fraco (?). Assim que terei que compactuar com o machismo ancestral. Apesar deste axioma, não pense que por aquelas bandas grassa o fundamentalismo iraniano. É uma sociedade plural, como provam as inúmeras igrejas cristãs, sejam católicas, maronitas ou ortodoxas. Nas mesmas praças, lojas e restaurantes, convivem mulheres com chador e outras de cabelo farto e solto, algumas de decote generoso, até pelos padrões brasileiros. Num restaurante elegante de Alepo, terei a visão de uma patricinha, acompanhada por familiares, em trajes tão sumários que faria sucesso no Bois de Boulogne. Ninguém aqui condena. Mas, não esqueça: em qualquer lugar a discrição é sempre a melhor escolha.
Continuo minhas andanças até encontrar o templo da gula damascena. O Bakdash é um café-pastelaria de bom tamanho, dois níveis, fartura de espelhos, afrescos idílicos e orgia de flores de plástico. Durante o dia inteiro as mesas são tomadas de assalto e você terá que aguardar em pé. Mas é na entrada que o espetáculo surpreende.




Pense num dia de promoção de computadores a duzentos reais na Insinuante, monte de gente brigando para pegar o seu... Pois é. Não se trata aqui de informática, mas de m´hallayeh, creme de leite batido no pilão, com amêndoas e pistaches. Não existe um fellagah que não sonhe, lá no seu vilarejo além do Eufrates, em chegar um dia a Damasco e desfrutar desta delicia impar. Então... Haja empurrões!

(Outro dia tem mais sobre a Síria!)

Um comentário:

  1. Adoro as crônicas das suas viagens !
    A vontade é de seguir com vc.
    beijos
    Kate

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