Tivéssemos outros governantes, a rua Ruy Barbosa seria bastante mais atraente. Mas nem o rebanho de vereadores confortavelmente instalado bem no meio dela se preocupa. Quem por lá passa não se lembra de detalhar o casario, mas lhes digo: vale a pena deter-se na descoberta da rua. Começa por um imenso painel de Carybé e uma belíssima farmácia homeopática, terminando pela muy nobre casa de Ruy Barbosa.
É a rua dos antiquários mais tradicionais da Bahia. Lustres, jóias, cristaleiras, espelhos, porcelanas, armários centenários, altares barrocos e curiosidades coabitam sem preconceito com cópias de móveis coloniais e laliques argentinos. Um dia, talvez, teremos os fundos do Museu do Negro, com entrada pela rua do Tesouro. Reparem naquela pietà, curiosamente colocada nas alturas. Não tem ares de Michelangelo? Bem, olhando de longe...
O mais famoso sebo de Salvador reina absoluto no princípio da rua. Mas cuidado. Ao pedir o preço de algum livro usado, você será avaliado por olhar perspicaz antes de ouvir a resposta. Ruelas e vielas a cortam, umas subindo, outras descendo desvairadamente, como a ladeira do Berquó que abriga a magnífica sede do Iphan. Como gostaríamos que os belos painéis de azulejos deste solar fossem acessíveis a visitação pública!
Por hora, como já é meio-dia, não vamos deslizar ladeira abaixo, mas penetrar na casa da esquina, n° 29, casa do princípio do século XIX, cujos donos tiveram o cuidado de manter, na medida do possível, o aspecto original. Dans son jus. Trata-se de um dos mais deliciosos restaurantes da cidade que, prova de qualidade, existe há mais de quarenta anos. Um casal a antiga responde pela hospitalidade, o cardápio e a extrema higiene dos espaços. Don Luiz, galego com muita honra é o RP do restaurante e a redondinha Karina, baiana da gema, tudo controla por trás de seu balcão enfeitado de grinaldas.
Se o patrão é um sorridente bon-vivant que muito aprontou até poucos anos atrás, a patroa, olho sempre bem aberto, é exímia artista, como bem provam as pinturas espalhadas pela casa. Outros colegas ofereceram obras, em legítima prova de apreço. Emanoel Araujo, que costuma aqui almoçar, sempre com chapéu na cabeça e sua corte ao lado, foi o mais generoso. Foi e continua sendo. Outros fizeram questão de figurar nas paredes, como Calazans Neto, Mario Cravo, Ademir Martins, Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Justino Marinho, Ieda Maria, Luis Jasmim e Cesar Romero. Antigas fotos do centro de Salvador completam o sabor histórico e cultural do Mini-Cacique.
Mas a arte maior está no cardápio, encruzilhada de três culinárias: baiana, portuguesa e espanhola. Alguém ainda não ficou convencido? Então, por favor, vá conferir! Nas minhas freqüentes investidas no local, contento-me com os pratos do dia, de preços muito razoáveis e fartura fugindo de qualquer intenção nouvelle cuisine.
O que costumo comer? Língua e rabada. Você não acha chique? Paciência. Eu quero é comer o que me agrada e os dois extremos bovinos são uma festa para meu paladar. Já na sexta-feira, dia mor da casa, gente fazendo fila, minha gula hesita entre lulas com batatas e arroz de polvo, ambos preparados pelo maestro Don Luiz. Não acredito que haja, no Porto, Compostela ou São Paulo, chefes que possam com ele rivalizar.
Se a adega de vinhos nunca foi notável, assim mesmo é possível encomendar um honesto tinto português Periquita, bem melhor que o costumeiro “carrascão” servido nas tascas de Lisboa. Como nunca dispenso sobremesa, quando tem, vou direto ao doce de leite, preparado pela própria artista.
Único senão, o cafezinho que ainda não acompanhou a evolução da sociedade. Mas nada que seja dramático. É só subir até outro sebo, o Berinjela, na rua da Ajuda, para saborear um bom expresso e futucar nas prateleiras para outro nutriente, o do intelecto.
Se bem que tão boa refeição como aquela também é coisa para ocupar a cabeça...
E aqui, neste sebo, os livros têm preço a lápis escrito na contracapa.
Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 21 de setembro de 2009.
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