Um Museu da Cidade digno de Salvador
O mundo ocidental está testemunhando uma radical transformação dos conceitos de museologia. O Institut du Monde Arabe em Paris, o Guggenheim de Bilbao e o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo são exemplos, entre muitos, da necessidade de rever velhas fórmulas que não mais satisfazem o visitante.
Nosso Museu da Cidade, que já nascera exageradamente modesto, nunca correspondeu ao que se poderia esperar, sem ufanismo, da mais antiga capital do maior país da América latina. Com suas salinhas, corredores e escadarias, furado de portas e janelas que nem queijo suíço, é absoluto contra-senso a tão ambiciosa proposta.
O que seria uma nova abordagem museológica para tão relevante proposta? Não tendo formação neste campo, não me caberia responder, mas, já que me joguei na água... Mais que uma sucessão de quadros e objetos, seria antes de tudo um banco de dados sobre os mais variados temas. Desde a composição geológica do solo da capital, passando pelas características ambientais – clima, águas, flora e fauna – até as etnias, religiões, gastronomia, cartografia, indústrias, economia, turismo, história e expressões culturais, incluindo canções, danças, carnavais, costumes, artesanato urbano e curiosidades. Sem esquecer dados biográficos sobre grupos e indivíduos, mulheres e homens, que teceram a trama de uma sociedade essencial à formação do ser brasileiro. Sem esquecer também uma sala de exposições temporárias ligadas aos mesmos temas e sala multiuso para expressões urbanas – como repentistas e cordelistas - e filmes envolvendo a capital, sejam de ficção ou documentários. Espaços não faltam. Desde o cinema-teatro Jandaia até as traseiras da Igreja da Barroquinha ou, por que não, na península de Itapagipe, tão desprovida de centros culturais, fora as tradicionais referências. Este assunto, aliás, mereceria mais amplo debate. Salvador precisa recuperar o tempo perdido - nos dois sentidos - e integrar o pólo internacional dos grandes museus com o que mais tem a ver com sua essência: a Cultura e a Memória.
Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 25 de abril de 2010
Por que um Museu do Azulejo?
Quem já viajou a Lisboa deve ter visitado o extraordinário Museu do Azulejo, junto à igreja da Madre de Deus, digna esta das mais loucas igrejas barrocas baianas. Lá se encontra o único panorâmico de Lisboa anterior ao terremoto de 1775, comparável ao painel da igreja da Ordem 3a de São Francisco em Salvador. O museu espelha uma civilização inteira com suas raízes, ramos, galhos e frutos, desde os “zeligs mozárabes” até a produção mais atual, de Bordalo Pinheiro a Cargaleiro e Querubim Lapa. Sem esquecer o mestre, Jorge Barradas de quem Salvador possui dois importantes painéis.
Aqui temos mais uma falha museológica, falha esta que o modesto Museu Udo Knoff nunca saberia preencher, embora esteja ultimamente com interessantes propostas de contemporaneidade. O espaço por demais exíguo, não permite a justa cobertura de tão importante faceta de nossa cultura e história.
Salvador, além de riquíssimo acervo azulejar barroco, possui um patrimônio de fachadas do século XIX espalhado pela cidade, tão - ou mais - rico quanto São Luis do Maranhão ou Recife, desde a península de Itapagipe até o Barbalho, Santo Antônio, Saúde e Areal de Cima. A azulejaria dos XVII e XVIII talvez tenha sido exaustivamente inventariada, mas não me parece que os séculos seguintes tiveram a mesma honra. Com tantos prédios azulejados hoje em dramática situação de risco, precisamos com urgência, além de restaurações imediatas, dedicar um daqueles belos casarões coloniais à documentação e preservação do precioso patrimônio. Aproveito para reverenciar nestas páginas a memória do professor Pedro Moacir Maia que tanto pesquisou e tanto lutou pela preservação de uma arte profundamente ibérica, herança de longa colonização moura. Desde as margens orientais do Mediterrâneo e norte da África, até o México e Argentina, encontramos no azulejo uma expressão cultural comum a diversos países, línguas e credos. A visão ampla e minuciosa do sensível acadêmico deixou um legado que devemos resgatar, salvando nossas fachadas azulejadas.
Doar é bom, mas pode doer
Um artigo de meia-página neste mesmo jornal não despertou a devida curiosidade, nem muito menos comentários de observadores geralmente atentos, apesar do bombástico título “Quarenta bilionários dos EUA aceitam doar 50% de suas fortunas para caridade”. Mesmo se não houver mais adeptos, o povo estadunidense poderá se orgulhar não somente de um fato histórico, mas também de uma atitude altruísta impar ao ser contemplado por U$106 bilhões de dólares. Cornucópia generosamente vertida em apoios à saúde, educação e arte.
Será que debaixo do equador poderíamos esperar algo parecido? Afinal, quem conhece a lista Forbes - com certeza a coluna social mais impactante do globo - sabe que um bom número de brasileiros tem o privilégio de figurar entra os mais afortunados do planeta. Não vamos citar nomes para não sofrermos eventuais retaliações – com esta gente não se brinca - mas cabe ao leitor fazer sua própria lista dos felizardos que bem poderiam se lembrar de que o Brasil é um dos países com maior injustiça social, neste campeonato que nos envergonha a todos, muito mais que perder uma Copa do Mundo. Infelizmente, aqui vivemos outra realidade. Sem ousar comparar o grão de areia que sou em relação às douradas dunas desta seleta praia, tive a veleidade bizarra, anos atrás, de doar, sob forma de fundação, minha casa (denominada, conforme edital do Ministério da Cultura, Casa-Museu Solar Santo Antônio) ao Estado da Bahia, com todo seu acervo. Acervo que andei juntando durante sessenta anos nas minhas vivências e andanças por cinco continentes, energizado por uma curiosidade sempre alerta. Arte popular, contemporânea, acadêmica, psicótica. Objetos, quadros, ex-votos, máscaras, caligrafias, cerâmicas, livros, tecidos, tapetes, curiosidades. Daria ao público uma noção diferente do que pode ser um olhar. Nada de Nissim de Camondo ou Wallace Collection, mas um conjunto coerente até no seu ecletismo. Na hora do embalo, o Ministério Público advertiu que eu teria que pagar um imposto sobre esta doação. Acredite se quiser...
Nós, sobreviventes.
Sorry, periferia. Os americanos e os franceses ainda não entenderam nada. A Bahia deveria exportar pra lá um ou dois prefeitos como aqueles últimos que a gente teve a felicidade de eleger. Só assim para a gringada entender como se gera uma cidade. Explicando melhor: Quem já viajou acima da linha do equador deve ter notado em Nova-Iorque aquela imensa área que chamam de Central Park ou em Paris o famoso Bois de Boulogne. Que absurdo, tanto terreno baldio! Quanto desperdício de mão de obra desempregada!
Coloquem um João ou um Antônio qualquer na administração destas cidades e aguardem. Não passarão seis meses para ele apresentar, com o apoio de poderosas construtoras e “flexíveis” arquitetos, of course, um luxuoso projeto de privatização da área, agora dividida em loteamentos classe A. Parte condomínios de alto padrão, bien sûr, parte torres de escritórios nos andares inferiores e lofts, cada um com piscina, nos pisos superiores, com direito a vista sobre la tour Eiffel ou the Hudson river. Cada torre terá o nome de um escritor francês ou atriz de Hollywood. E uma floresta de outdoors louvando a natureza! Não faltará um mall (denominação mais chique que shopping). Todas estas obras em véspera de eleições, naturellement. Simples coincidência, obviously. De nada adiantará que as poetizas de lá e os ecochatos de plantão reclamem, espezinhem ou encabecem abaixo-assinados. La raison d´état, my dear. E eu, no meu cantinho, velho esclerosado que ainda se lembra dos flamboyants do Terreiro de Jesus e as “chuvas de ouros” da Praça da Sé e chora... Será que somos sobreviventes de alguma raça em vias de extinção de gente sensível até a pieguice? Será que o futuro é mesmo transformar nossas cidades em imensos saaras de asfalto pontuados de montanhas de concreto enfeitadas por palmeiras e roseiras de plástico? Adivinho, metido a Nostradamus, umas fontes luminosas e coloridas alegradas por irritantes musiquetas de elevador e o conjunto vigiado dia e noite por construtoras ávidas de destruir para reconstruir sempre mais alto...
Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 4 de setembro de 2010
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