Eu sabia! Tinha de haver pelo menos um grande fotógrafo belga. Era inconcebível que, num país de cultura visual tão poderosa, onde nasceram Hergé e Franquin e existe uma corrente de banda desenhada mais viva do que nunca, não houvesse um grande fotógrafo.
Como sabem, no ano passado cumpri o desejo antigo de viajar até à Bélgica, mais concretamente até Bruxelas. A Bélgica não é o primeiro país que vem à mente quando se pensa em destinos turísticos, e certamente Bruxelas não tem a importância de outras capitais como Paris, Londres ou Berlim (ou tem, mas é artificial porque é uma importância conquistada à custa da iniciativa da Comunidade Económica Europeia de lá instalar as suas instituições executivas), mas há dois ou três motivos para que tivesse sentido simpatia pela Bélgica desde criança.
O primeiro foi a banda desenhada. É muito simples: eu convivi com a banda desenhada desde que aprendi a ler. E quase todos os grandes autores de BD são belgas. Há alguns franceses, mas os mais importantes são belgas. Claro que desejei sempre conhecer o país de origem daqueles génios e, apesar de a minha estadia em Bruxelas ter sido curta, tive tempo suficiente para descobrir que, a despeito de o mercado estar dominado pelas criações norte-americanas, a BD belga está mais pujante e criativa do que nunca – mas também cada vez mais orientada para um público adulto, o que a remete para um estatutounderground.
Mais tarde veio o meu interesse por automobilismo e, embora não percebesse nada daquilo por ser ainda demasiado novo, sabia que tinha um favorito chamado Jacky Ickx, belga de Bruxelas. Depois os meus pais fizeram amizade com um casal belga, os Bolle, que tinha uma característica curiosa: ele era valão, ela flamenga. Um verdadeiro hino à harmonia entre povos eternamente rivais.
Tudo isto concorreu para que, ao contrário do que acontece com a totalidade da população portuguesa, me tivesse interessado pela Bélgica, mas quando me veio o interesse por fotografia, descobri uma grande lacuna: não havia nenhum fotógrafo belga importante. A Bélgica teve um lugar importante na indústria fotográfica, com a Agfa (mais tarde Agfa-Gevaert), mas fotógrafos, esses, não conhecia nenhum. Pensava eu.
Esse fotógrafo belga importante afinal existe e chama-se Harry Gruyaert. Curiosamente, as suas fotografias não me eram desconhecidas. Foi decerto o nome Harry que me induziu em erro – pensei que fosse um americano de ascendência flamenga ou holandesa –, mas Gruyaert é tão belga como o piloto de motocross Harry Everts, que era do meu tempo. (Aliás, se há algo além da BD em que os belgas são realmente bons é o motocross; o filho deste Harry Everts, Stefan, foi dez vezes campeão do mundo!)
Chega de tergiversações. O tema deste texto é o grande fotógrafo belga Harry Gruyaert, nascido em Antuérpia em 1941 e membro da Magnum. O que faz de Gruyaert um grande fotógrafo? A cor, antes de mais. Ele já não pode ser considerado um pioneiro da cor, como William Eggleston ou Ernst Haas, mas a maneira como a usou tornou-o reconhecido. Digamos que Gruyaert foi dos fotógrafos que fez uma utilização inteligente da cor, usando-a de forma expressiva. Nas fotografias de Gruyaert a cor é um elemento que está presente, não por uma opção de mostrar as coisas objectivamente, sendo a cor parte integrante delas, mas por escolha estética: as cores estão na imagem por serem aquilo que a faz funcionar, por serem o motivo de interesse de um determinado cenário.
Fazer isto merece respeito, porque é muito mais difícil do que parece. Harmonizar as cores é, só por si, um problema que nem todos os fotógrafos resolvem com sucesso; encontrar motivos em que é a cor que dá dinâmica e interesse à imagem, porém, é algo que está ao alcance de poucos. Aliás, muitos evitam este problema fotografando a preto-e-branco, mas esta é, se virmos bem, a solução mais fácil. Eu já o disse aqui e repito, apesar de esta afirmação poder parecer altamente esdrúxula: é dificílimo fotografar a cores. Ora, Harry Gruyaert é um dos grandes mestres da cor, juntamente com Ernst Haas.
Mas não é apenas o uso da cor que faz de Harry Gruyaert um grande fotógrafo. A sua representação espacial – expressão pomposa que acabei de inventar para substituir a palavra «enquadramento» – é extremamente bem pensada e, sobretudo, os temas são insólitos e originais. Qualquer um que se propusesse fotografar Marrocos contentar-se-ia em fotografar a vida nos souks, as mesquitas, os anciãos, as tapeçarias; Harry Gruyaert mostra-nos locais desolados, mas com a cor a assumir um lugar proeminente. Gruyaert entreteve-se a fotografar imagens saturadas e distorcidas dos ecrãs de televisões, bem como salas de estar, esplanadas, praias e cenas ditas de rua – sempre a cores, sempre com enquadramentos excepcionalmente bem compostos e todas com uma mensagem. Sim, porque as fotografias de Gruyaert não são só para ser vistas: são para ser lidas. São um juízo, nem sempre benevolente, sobre tudo o que o fotógrafo viu – como a alienação televisiva, que inspirou as suas fotografias de ecrãs de televisão.
Portanto, há um grande fotógrafo belga. Há outro – ou melhor: outra –, que é Martine Franck, mas a sua obra está condenada a ficar na sombra da do marido, que foi nem mais nem menos que um tal Henri Cartier-Bresson. O que, diga-se (em antecipação a um texto futuro dedicado a ela), é injusto, mas, seja como for, Gruyaert é o mais importante fotógrafo belga. E um dos maiores de sempre – pelo menos na fotografia documental a cores.
M. V. M.
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