quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

NINGUÉM DEVE ESQUECER

Quando um caso de horror 
explica o recurso à violência
Ricardo Noblat

“Era uma guerra. E todos os meios de se ganhar uma guerra devem ser aplicados”, ouvi há muitos anos de um general que tentava, assim, justificar o uso de tortura contra pessoas consideradas inimigas da ditadura militar implantada no país em março de 1964.

“Crimes foram cometidos dos dois lados. A anistia serviu para apagar culpas”, completou o general, na época na reserva. Morava na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, reduto de militares aposentados. Resistia à admitir que um dos lados, o dele, cometera mais barbaridades do que o outro.
A esquerda que pegou em armas contra a ditadura cometeu mortes. Poucas. Não há registro de que tenha torturado. Mas é impossível comparar a violência que ela produziu com a violência adotada pela ditadura como política oficial do Estado brasileiro entre 1964 e 1985.
O horror de um único crime de autoria da ditadura, como o que será relatado a seguir, explica o recurso à violência para derrubar uma situação que desrespeitava gravemente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento promulgado em dezembro de 1948 e assinado pelo Brasil.
O cearense Tito de Alencar Lima, nascido em Fortaleza, foi um frade dominicano que se enforcou na França em 1974 depois de ter sido morto aos poucos por seus torturadores no Brasil que o prenderam junto com outros dominicanos em novembro de 1969.

“Nessa ocasião, foi acusado de manter contatos com a organização de extrema esquerda chamada Aliança de Libertação Nacional, comandada pelo líder guerrilheiro Carlos Marighella. Relatou ter sofrido torturas durante cerca de trinta dias. Depois deste período, foi levado para o Presídio Tiradentes, em São Paulo, onde permaneceu até 17 de dezembro.
Do presídio foi transferido para a sede da Operação Bandeirantes - local chamado por Maurício Lopes, torturador, de "sucursal do inferno”. “Pau-de-arara”; choques elétricos na cabeça, nos órgãos genitais, pés, mãos e ouvidos; socos, pauladas e palmatórias são apenas alguns dos métodos de tortura pelos quais Tito passou durante 48 horas. Além disso, foi preso na chamada "cadeira do dragão" e queimado com cigarros.
Uma noite no pau-de-arara, entretanto, foi o que levou o Frei à primeira tentativa de suicídio. Tito cortou-se com uma gilete e foi levado ao Hospital Central do Exército. O tratamento médico pelo qual passou durou aproximadamente uma semana. Mas a tortura psicológica não deixou de acontecer.
No início de 1970, Frei Tito foi torturado nos porões da chamada “Operação Bandeirantes”. Na prisão, ele escreveu sobre a sua tortura e o documento correu o mundo e se transformou em símbolo da luta pelos direitos humanos. Tito com a palavra.”

"Fui levado do presídio Tiradentes para a "Operação Bandeirantes" (Polícia do Exército) no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: "Você agora vai conhecer a sucursal do inferno". Algemaram minhas mãos, jogaram-me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.
(...) Ao chegar ao me destino fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”.
Pouco depois me levaram para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me "telefones" (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do "pau-de-arara". O interrogatório recomeçou.

As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava, mais fortes eram as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.
Na quarta-feira fui acordado às 8 h. Subi para a sala de interrogatórios onde a equipe do capitão Homero me esperava. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que no dia seguinte enfrentaria a “equipe da pesada”.

Na quinta-feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas. "Vai ter que falar senão só sai morto daqui", gritou. Logo depois vi que isso não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na "cadeira do dragão" (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda.
A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao "pau-de-arara". Mais choques, pauladas no peito e nas pernas a cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse "antes de morrer". Não chegaram a fazê-lo.
Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz.

"Nosso assunto agora é especial", disse o capitão Albernaz, e ligou os fios em meus membros. "Quando venho para a Oban - disse - deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede... Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo, não, que se você nada disser, maior a descarga elétrica que vai receber".
Eram três militares na sala. Um deles gritou: "Quero nomes e aparelhos (endereços de pessoas)". Quando respondi "não sei", recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos.
Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte "metidos na subversão". Partiu para a ofensa moral: "Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?". Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pele DEOPS tinha sido "a toque de caixa" e que todos os religiosos presos iriam à Oban prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo "tratamento".

Disse que a "Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo". Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. À certa altura, o capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca "para receber a hóstia sagrada". Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja, berraram que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas, encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.
Às 18 horas serviram jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma "explicação". Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disseram que, em vista de minha resistência à tortura, eu era um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O "interrogatório" reiniciou para que eu confessasse os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estômago, palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo.
Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo "corredor polonês". Avisaram que aquilo era a estreia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no "pau-de-arara". Mas o capitão Albernaz objetou: "Não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".
Na cela eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior do que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros padres sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me. Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero.

Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passava nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre. Na sexta-feira fui acordado por um policial.
Havia ao meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: "O senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos". Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata.
Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a "gillete" para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gillete. Enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa.

Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: "Doutor, ele não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos". No meu quarto a Oban deixou seis soldados de guarda.
No sábado teve início a tortura psicológica. Diziam: "A situação agora vai piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo". Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse. Na segunda noite recebi a visita do juiz auditor acompanhado de um padre do Convento e um bispo auxiliar de São Paulo.
Haviam sido avisados pelos presos políticos do presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles mostrando os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das Clínicas e as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era "uma estupidez" e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltaria à Oban, o que prometeu. De fato fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar.

As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência necessária, mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui levado de manhã para a Oban. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar. À noite entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.
(...) Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas." Frei Tito de Alencar Lima, OP, fevereiro de 1970”.

Em 13 de janeiro 1971, Tito foi deportado para o Chile e, sob a ameaça de novamente ser preso, fugiu para a Itália. (...) De Roma foi para Paris, onde recebeu apoio dos dominicanos. Traumatizado pela tortura, Frei Tito submeteu-se a um tratamento psiquiátrico. Seu estado era instável, vivendo uma agoniada alternância entre prisão e liberdade diante do passado. O convento de Saint Jacques, localizado em Paris, abrigou Tito até junho de 1973.
Lá, passou a estudar na Universidade de Sorbonne. O tratamento psiquiátrico, entretanto, não foi suficiente para que a sanidade fosse recuperada. O frei foi, então, enviado para o convento dominicano de Sainte Marie de la Tourette, em Eveux. Uma vez, em pânico, recusou-se a entrar no convento e os frades chamaram o frei Xavier Plassat. Ao encontrar Tito, no meio da chuva, assustado e escondido atrás de uma árvore, ele dizia que o delegado Sérgio Fleury, que o torturara em São Paulo, não o deixava entrar no convento.

Xavier então pediu a Tito para tomar café com a "autorização de Fleury". Ao entrar no carro, Xavier disse a Tito que o esperasse ali enquanto buscava alguns agasalhos. Quando Xavier voltou, Tito estava fora do carro (escondido na mesma árvore) e assustado, como se Fleury tivesse entrado no automóvel.
No dia 10 de agosto de 1974, um morador dos arredores de Lyon encontrou o corpo de Frei Tito suspenso por uma corda em uma árvore. Foi enterrado no cemitério dominicano do Convento Sainte-Marie de La Tourette em Éveux. Em 25 de março de 1983, os restos mortais de Frei Tito chegaram ao Brasil. Antes de seguirem para Fortaleza, passaram por São Paulo, onde foi realizada uma celebração litúrgica.
Cercado por numeroso grupo de sacerdotes, Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo, repudiou a tragédia da tortura em missa de corpo presente acompanhada por mais de quatro mil pessoas. A missa foi celebrada em trajes vermelhos usados em celebrações dos mártires.”

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