Princípio de
dezembro. O telefone toca.
Alô? Uma voz feminina.
Momento, vou desligar a
televisão! Meu controle remoto não funciona. Agora. Diga...
Aqui Fulana. A
gente se conhece, sou amiga do ...
Não faço ideia de quem é ela, e dele tão
pouco. Costumo colocar minhas pequenas amnésias na pasta da senilidade. Ótima
forma de me preservar.
Prossegue.
Tem um pessoal na Assembléia Legislativa que tá sabendo de meu trabalho em prol
da cultura popular, do centro histórico e mais não sei mais o quê. Querem me
homenagear. Cidadão baiano.
Alarme de meu desconfiômetro. Verdade que brigo
muito por aquilo em que acredito, mas até agora os
resultados têm sido, convenhamos, bastante pífios.
E mais:
sabendo de alguns outros assim homenageados, me sentiria em péssima companhia.
Ou então, vou aceitar, sim, colocando condições preliminares. Que se faça um
Museu da Cultura Popular Baiana. Algo de peso, entre o Homem do Nordeste do
Recife e a Casa do Pontal do Rio de Janeiro. Não uma casa de bonecas como nosso
medíocre Museu da Cidade, não.
Um museu arrojado, contemporâneo, inovador, que
destaque a importância da literatura de cordel e dos repentistas, dos carnavais
do interior, das feiras e mercados, das canoas e dos saveiros, dos vendedores
ambulantes e seus pregões, das culinárias, das lendas, mitos e provérbios, das
arquiteturas de barro, das velas e dos remos, das procissões e orações, das
cirandas e rodas de samba, dos oleiros e bordadeiras...
Tem mais. Que os 1.500 imóveis abandonados,
vazios, do centro histórico de Salvador sejam ocupados, habitados,
ressuscitados. Em Portugal os sem-tetos estão processando o estado por atentado
aos direitos humanos.
Nosso centro histórico teria uma larga fatia de povão? E
daí? É assim no Trastevere romano, na Alfama lisboeta, no Soho de Londres, na
Lapa carioca. Isso se chama identidade.
Depois
então, que venham títulos, discursos e condecorações.
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