sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

PÉ DE CACHIMBO

MARCELO TORRES

Domingo, cedinho, o filho o acordou cantando: - Hoje é domingo/ Pé de cachimbo. A parlenda ecoou em seu passado, foi parar na infância do Junco de outrora, onde todos cantavam e ouviam assim esse verso.

- Hoje é domingo/ Pé de cachimbo.

Para ele, domingo sempre rimou com pé de cachimbo. O cachimbo podia ser de ouro - para rimar com touro ou besouro – ou de barro – para rimar com jarro -, mas a rima do domingo era com pé de cachimbo.

Era sagrado: dia de missa, a velha domingueira engomada, o sapato lustrado, cabelo penteado e talco no pescoço; encontrar os outros meninos com suas mães na igreja, dia de almoçar na casa de tios ou avós.
   
Na fantasia e imaginação da brincadeira lúdica, o que importava é que domingo rimava com cachimbo. Uma rima rica e bela, uma coisa linda e poética, enfim, era uma viagem no feliz – para lembrar um conto de outro menino.

No último domingo ele postou a parlenda com o sagrado pé de cachimbo. E não tardou a surgir o dedo da “correção” para dizer que o “pé” estava errado, “o certo é pede”, do verbo pedir, pois “pé de cachimbo” não existe.

Ora, ele pensou, se não existe pé de cachimbo, também não existe pé de valsa, nem pé de mesa, nem pé de serra, nem pé de vento, nem pé de guerra, nem pé de página, muito menos pé de igualdade!

Que seria pé de igualdade, segundo essa gente tão racional?  Pé de página acaso seria uma árvore que, em vez de folhas, seria cheia de páginas? E o que seria um pé de vento? Uma árvore cheia de vento?

Se pé de cachimbo não existe, então não existe pé de galinha na cara de ninguém. Nem pé de ouvido ou pé de orelha. Ele riu pensando nisso, lembrando que nunca, jamais deu tapa em pé de orelha ou no pé do ouvido.

Olhou em volta e viu que até a casa tinha pé, o pé direito – só não tinha o esquerdo. E viu o pé de parede, o pé de cadeira, o pé de mesa, e também o pé do sofá, o pé de porta, o pé da cama, e era pé que não acabava mais.

Pé não é só o membro inferior do corpo. Nem é só sinônimo de árvore. Pé é também a base de alguma coisa: caiu aos pés da cruz; pintou o pé de parede; cortou o pé do cabelo; fez o pé de meia.

- Tudo, tudo, tudo vai dar pé – canta Gil.      

Pé de Cachimbo é um personagem de Erico Verissimo. Ziraldo, no tempo de menino maluquinho, cantava “pé de cachimbo”, que também apareceu em Macunaíma, de Mário de Andrade.

Monteiro Lobato fez o menino Pedrinho cantar “domingo pé de cachimbo” no Sítio do Pica-pau Amarelo. Pensando no Sítio, será que a boneca Emília faz sentido? E um sabugo de milho que vira visconde?

Marcha soldado, cabeça de papel? Não tem lógica. O cravo brigou com a rosa? Não faz sentido. Nunca, jamais o rato roeu o rabo da raposa. Dona Chica não admirou-se do “berrô” que o gato deu, pois, ao pé da letra, gato não berra.

Ora, disse para si mesmo, que frase é essa, “ao pé da letra”? Pela lógica desse povo racional, “ao pé da letra” só pode ser outra frase que não faz sentido algum, pois não existe uma árvore que dê letras como frutos. Ou existe?

Magritte pintou um cachimbo e escreveu no pé do quadro: “Isto não é um cachimbo”.  Como assim, não é um cachimbo? – pensavam as pessoas, certas de que estavam vendo um cachimbo e não a pintura de um cachimbo.

E ao final do domingo, o moço fez uma prece surreal para Magritte, também rezou para São Foucault e falou para as paredes: “Isto não é um pé de cachimbo, oh, prezadas paredes! Isto é uma parlenda”.

Se as paredes têm pé, elas também têm ouvidos. 

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