sábado, 6 de setembro de 2014

CARTA ELEGÍACA...

Postado pelo poeta e atento blogueiro Silvério Duque, João Carlos Teixeira Gomes, nosso Joca, brilhante intelectual, percuciente crítico literário e vigoroso articulista, perambula hoje pelo Facebook com um poema de alto timbre modernista e lastro sensível, que merece leitura mais ampla, fazendo com que reconheçamos a urgente necessidade de que ele volte logo a publicar novo livro de poemas, logo que volte de sua excursão à Rússia, para onde partirá no próximo dia 11, cheio de ânimos e ansiosas expectativas. Vai abaixo o torpedo lírico carregado de verdades e vaticínios para amada por enquanto incógnita.,,. 
Abraços a todos.
Florisvaldo

CARTA ELEGÍACA A GERÂNIA MIRAGAIA

por João Carlos Teixeira Gomes

I

Amo-te porque detesto a exatidão.
Porque tens o apelo das coisas imprevisíveis.
Como o pôr-do-sol,
que, sendo o mesmo, surpreende todos os dias;
ou a colocação das estrelas
no céu, sujeitas a giros mínimos,
todavia perceptíveis;
a oscilação das marés,
a renovação da natureza.
Nada é tão completo
que não deva mudar a cada momento. 

II

E, na verdade, muda.
Contempla com atenção a paisagem
do teu rosto
para que enfim não te assustem
as tramas do tempo falaz
que te espreita (ávido) da engrenagem das horas.
Jamais a superfície dos espelhos
permitirá segredos a teus olhos atentos.
É ilusão suborná-los.
Neles, a cada manhã,
o exato registro das armadilhas do tempo,
ante cujos enredos
somente os ventos permanecem inalterados
– porque sopram da Eternidade.
E embora seja algo de leve e de alado
(porque assim é a beleza moça)
obviamente não tens a essência
ou as disponibilidades dos ventos.

III

Ah, os ventos. Quem os decifra?
Suas rotas são circulares
e por isso imutáveis.
Estes que agora te envolvem as formas efêmeras
são os mesmos que desfolharam as árvores do Paraíso no primeiro outono,
varreram o refúgio dos deuses antigos
e os desertos dos profetas,
invadiram as ágoras silenciosas
e se multiplicaram no corredor dos séculos,
ungidos de poder e desdém.
Mais uma vez chegaram para testemunhar
a fragilidade da perecível argila.
Vieram e estão indo,
pois o seu trânsito é ilimitado: tocarão
as gerações sucessivas
até o final dos tempos,
quando de novo soprarão sobre a terra deserdada,
vasto campo de ossos empilhados
após as flagelações do Juízo.
Ama os ventos porque são livres,
mas inveja-os porque são perenes
e continuarão a rodar em desatino,
enquanto a cada instante
murcharão as pétalas da tua beleza,
grande flor temporal que um dia a morte virá colher
para enfeitar a fronte descarnada,
ela que incessante cultiva
nos umbrais da vida sem retorno
os seus buquês de pungência e corrosivo mistério. 

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