terça-feira, 8 de julho de 2014

DE MALU FONTES

O tribunal da web e o cachorro de Zúñiga

Nos últimos anos, inaugurou-se uma nova esfera da vida pública: a internet. Ou, melhor dizendo, instituiu-se na vida de quase todo mundo a dimensão das redes sociais. Nela, estranhamente, pessoas comuns, homens e mulheres considerados normais dentro de parâmetros consensuais, tornam-se, ao menor estímulo, bestas-feras dispostas a desfilar um corolário de ofensas inimagináveis. Diante de um post, de uma imagem, aquele amigo manso que conhecemos há anos surge monstruoso, trucidando moralmente alguém que também conhecemos, provocando algo entre a incredulidade e a vergonha alheia. Quase sempre, o único pecado do atacado é ousar escrever qualquer coisa diferente do que pensa qualquer juiz  do tribunal virtual autoempoderado e armado de ferocidade até os dentes, diuturnamente à espreita atrás de um teclado.
A semana começou, para o tribunal dos inquisidores das redes sociais, com uma sessão de luto e uma carnificina moral, não só simultâneas como também tendo em comum a mesmíssima causa: a lesão na coluna vertebral de Neymar, provocada pela entrada agressiva do colombiano Juan Zúñiga e que tirou o ídolo brasileiro da Copa do Mundo. Embora seja desnecessário falar da dimensão do luto pela vértebra machucada de Neymar, é imprescindível citar a composição do conjunto dos linchados pela manada enredada da web: o próprio, Zúñiga, claro (contra quem o mínimo que se disse foi a pérola racista: “só podia ser preto”), a ex-namorada de Neymar e mãe do seu único filho, a mãe e a filha pequena do zagueiro colombiano e... quem mais? O cachorro do jogador, atacado pelos brasileiros por não possuir, segundo aqueles que se manifestaram, dotes estéticos positivos o suficiente.
No caso da mãe do filho de Neymar, as ofensas, sempre reproduzidas pela imprensa como atribuídas a essa entidade coletiva vaga chamada de “internautas”, foram motivadas pelo fato de a moça ter postado fotos, em uma de suas redes sociais, ao lado de uma amiga com pose e cara de gente normal. Pela reação da manada, a moça teria que ter vestido preto, vertido e registrado as lágrimas em close e manifestado luto eterno. Só assim não teria deixado dúvidas sobre o seu estado d’alma diante do incidente.
Embora as redes sociais sejam um fenômeno recente e, nesse caso, trate-se de um fenômeno de escala internacional, já que o episódio relaciona-se a uma partida da Copa do Mundo, algum limite o tribunal das redes vai ter que ter num futuro breve. Daí ser didático, sim, o fato de uma moiçola baiana ter sido acionada pelos advogados do atacante Hulk, essa semana, por ter postado uma montagem fotográfica onde não apenas aparecia com o atleta como ainda reproduzia um diálogo fictício referindo-se a um encontro havido, às saudades e a um encontro futuro. Acionada, teve que pedir desculpas, dizer que era brincadeira e argumentar que várias outras mulheres estavam postando coisas semelhantes. O que ainda não a livrou de um processo.
No entanto, algo moralmente grave, se comparado aos posts de mulheres que manipulam fotografias amorosas com o calipígio Hulk, foi a falta de sensibilidade e ética da enfermeira cearense que expôs a agonia de Neymar. Ao ver o jogador estrebuchando de dor no corredor de um hospital, não pestanejou: apontou a arma contemporânea que atende pelo nome de celular, registrou a cena, sorriu, fez um vezinho de vitória arremedando Gisele Bündchen e despachou o filmete para o mundo inteiro. Sim, foi demitida. Mas, numa prova de que o tribunal da web tem leis muito particulares, o abuso da moça flagrando o jogador urrando de dor num hospital passou quase em brancas nuvens. Pela iniciativa, a moça foi menos atacada nas redes que o cachorro de Zúñiga.

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