terça-feira, 22 de julho de 2014

O CANGAÇO POPULAR

MALU FONTES

Embora o último cangaceiro do bando de Lampião já tenha morrido (há um mês, aos 97 anos), dificilmente haverá um nordestino que nunca tenha ouvido uma referência à turma de Virgulino Ferreira da Silva, que nos anos 20 e 30 aterrorizou o interior do Nordeste. A palavra cangaço é ainda tão forte no imaginário nordestino que tem sido usada para nominar de novo cangaço os bandos armados que hoje chegam às pequenas e médias cidades do interior do país e, armados até os dentes, ameaçam a população, prendem as autoridades, inclusive e sobretudo a polícia, disparam tiros para o alto e explodem com bombas agências bancárias em assaltos cinematográficos apavorantes.
Há uma semana, no entanto, essas cenas, que só eram vistas nas cidades do interior protagonizadas por assaltantes de banco e que pareciam atualizar no presente o cangaço do passado, adquiriram o aspecto de um levante popular na cidade de Amargosa,  a   220 quilômetros de Salvador. Após um policial civil matar com um tiro na cabeça uma criança de 1  ano, durante uma caçada atrapalhada a um suposto bandido que teria fugido  pelo quintal da família da vítima, a população transformou as ruas da cidade em cenário de cangaço. Revoltada com o assassinato e pedindo justiça, a população protagonizou um faroeste em tons mais intensos do que aqueles vistos nos episódios de assaltos a banco. Encapuzados, moradores fizeram barricadas, bloquearam ruas, incendiaram e depredaram mais de 16 carros, 40 motos, um ônibus escolar e um caminhão. Além disso, saquearam todas as armas da delegacia, soltaram os 14 presos e incendiaram o prédio, destruindo-o.  
O clima na cidade está longe de arrefecer no que se refere à indignação da população. No entanto, os detalhes que se sucederam ao episódio só têm contribuído  para que a reivindicação por justiça cresça. Somente graças à imprensa soube-se que o acusado pelo disparo 
que matou a criança, embora atue como policial civil em Amargosa,  tem nada menos que um mandato de vereador na Câmara Municipal de Cachoeira. Como a mesma pessoa, sem licença de nenhuma dessas duas funções, pode exercê-las simultaneamente é uma boa pergunta, tanto se feita à Polícia Civil quanto se feita à Câmara de Cachoeira. 
No meio do faroeste popular deflagrado pelo episódio, coube inclusive ao prefeito de Cachoeira declarar uma pérola para a imprensa no último final de semana. Disse que não conhecia o vereador. Sem desenhar fica difícil compreender essa afirmação do prefeito. Ou, de repente, é mais óbvio do que parece: como o acusado é policial civil em outro município que não aquele que o elegeu vereador e onde deveria exercer um mandato, pode ser que nunca disponha mesmo de tempo para comparecer às sessões na Câmara de Cachoeira. Daí o prefeito nunca ter tido a honra de ser apresentado ao vereador armado. Ontem foi anunciado o seu afastamento das funções parlamentares. 
A delegada de Amargosa, que na confusão fugiu para refugiar-se num hotel, também foi afastada do cargo. Em protestos nas ruas, os moradores continuam cobrando a prisão do policial e a sua ida a júri popular. Mas, pelo andar da carruagem, a segurança pública do estado parece não ter sido capaz de dimensionar o que quer e o que pode uma população furiosa com a associação entre violência, injustiça e impunidade. Não faltaram autoridades colocando panos quentes, negando o disparo de tiros na casa onde a criança morreu e escondendo os nomes dos policiais envolvidos. Um dia, todo povo cansa de ser gado abatido e a linha que separa cidadãos comuns de cangaceiros de ocasião torna-se invisível.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts with Thumbnails