domingo, 15 de dezembro de 2013

UMA NOVA ELIS?


RIO — Um burburinho toma conta da calçada em frente ao Shopping Leblon, e não tem nada a ver com o Natal. De quinta a domingo, o Teatro Oi Casa Grande, contíguo ao centro comercial, tem visto longas filas se formarem pelo menos uma hora antes de cada uma das cinco sessões semanais de “Elis, a musical”. Com ingressos esgotados com três semanas de antecedência, numa casa de 926 lugares, as pessoas ali torcem para que algum convidado desista à última hora, liberando uma entrada na bilheteria. Mas poucos desistem à última hora. Desde que tomou vulto o boca a boca em torno da atuação de Laila Garin no papel que dá título ao espetáculo, pode-se dividir os frequentadores de teatro no Rio entre os que já assistiram a “Elis” (20 mil pessoas desde a estreia, em 8 de novembro) e os que, provavelmente, ainda pretendem ver “Elis”.
À atriz baiana de 35 anos, olhos azuis e ruivos cabelos encaracolados têm sido destinados adjetivos como “arrebatadora” e “extraordinária”. Ela os aceita com humildade e gosta quando as pessoas a cumprimentam após cada sessão. Outro dia, uma senhora disse: “Ah, não vou nem falar, você deve estar cansada de ouvir...”. “Não tô, não”, respondeu Laila, pronta para receber os comentários, que vieram caudalosos.
— Eu estou tocando as pessoas, mas cada um de modo particular. Acaba sendo íntimo e pessoal. Por isso, cada um que vem falar comigo fala de um modo pessoal também — diz ela, que, apesar de não conseguir ver os rostos na plateia, percebe, do palco, um “funga-funga danado” depois de cantar, por exemplo, “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, um ponto alto das três horas e dez minutos de musical.
Fruto da paixão e do ácido
Laila Miranda Garin (pronuncia-se Garran) é filha de uma jornalista baiana e de um engenheiro de informática francês. Ela resume de forma sucinta a sua origem, a partir de um mestrado que a mãe foi cursar em Paris:
— Os dois se conheceram, tomaram um ácido e, no meio da viagem, falaram: “Vamos fazer um filho?”. Era eu.
Fruto de uma paixão potencializada com alucinógenos, Laila nasceu e cresceu baiana, com férias anuais na França. Ela até entende quando dizem que surgiu “de repente”, já que seu rosto não é conhecido do grande público. Mas a verdade é que não há nada de repentino na trajetória da aquariana de personalidade forte. Ao contrário, há uma linha coerente da menina que começou a estudar teatro aos 11 anos e canto lírico aos 13. Aos 15, já integrava um grupo de teatro amador, da Casa Via Magia, com quem fez a peça “Romeu & Julieta e Caetano”, com improvisos, fragmentos da obra de Shakespeare e canções do compositor. Um dia, o diretor Ruy Cesar (“Fico com muito dó porque falo nomes importantes que ninguém conhece”, observa) lhe disse para entrar sozinha e cantar à capela “O ciúme”.
— Era apavorante, mas foi uma das coisas mais prazerosas que fiz na minha vida. Tinha 15 anos e descobri que sabia cantar — diz ela, que continuou os estudos até se formar em Interpretação Teatral na Universidade Federal da Bahia (UFBA); paralelamente, cursou Mímica Corporal Dramática, método criado pelo francês Etienne Decroux.
A cena teatral em Salvador era intensa — Laila é da geração de Wagner Moura, Lázaro Ramos e Vladimir Brichta. Com Moura e Brichta, aos 18 anos, fez parte do elenco de “A casa de Eros!”, montagem dirigida por José Possi Neto que celebrava os 40 anos da Escola de Teatro da UFBA. O texto coletava trechos de várias peças, entre elas “A ópera dos três vinténs”, de Brecht. Possi perguntou quem sabia cantar “Jenny Pirata”. Ela sabia, e ganhou o personagem Polly.
— Foi aí que começou essa coisa de falar cantando, cantar falando, minha pesquisa atual, e minha paixão — diz ela, que acrescentou a seu currículo diretores como Luiz Carlos Vasconcelos (“um encantamento”), com quem atuou em “Porti-nari” (2003), e Cacá Carvalho, em “O homem provisório” (2007).
— Eu abria a boca para cantar, Cacá dizia: “Está belo.” “É um elogio?”, eu perguntava. E ele respondia: “Não basta para um ator cantar bonito. O que você está cantando? Que ação está provocando?”.
Laila captou a mensagem, e tem procurado a essência desde então. Nesse caminho, estagiou por seis meses no Théâtre du Soleil, fez “Grease” (“Foi quando descobri que não existe uma técnica da Broadway; existe técnica, e só”) em São Paulo e acabou chegando ao Rio, em 2009, para atuar em “Eu te amo mesmo assim”, espetáculo dirigido por João Sanches, com supervisão de João Falcão. Foi a chave para fechar o apartamento em São Paulo e se mudar para cá. Depois, fez “Gonzagão — A lenda”, que estreou em fevereiro, dirigida por Falcão, com quem aprendeu “tudo o que tinha de popular e dramático na música brasileira”.
Tradição, tradução, traição
Quando foi convidada a fazer o teste para Elis, Laila não tinha ideia de que eram 200 candidatas. Não achava possível, ainda, que pensassem nela seriamente para o papel-título. “Com esta cara, eu ia fazer Elis como?”, alega. Na primeira audição, cantou “Como nossos pais”, de Belchior. Na última, conquistou de vez a banca com “Fascinação” (Marchetti /Feraudy). Entre uma e outra, contou com a generosidade de João Falcão, que abriu mão da única voz feminina de “Gonzagão”.
— Ela é uma atriz excelente e uma cantora excepcional, uma das maiores que já vi. É bom que esteja em “Elis”, assim mais gente consegue ver seu trabalho — diz Falcão, que também a dirigiu num episódio da série da TV Globo “Louco por elas”.
Curioso é que Laila quase desistiu de Elis. Quando sobraram apenas cinco atrizes, avisou ao diretor Dennis Carvalho que não iria continuar. Ele insistiu. E, quando ela foi escolhida, a instruiu a não imitar Elis. “Quero sua verdade”, recomendou.
— Você acha uma assim em um milhão. Laila tem inteligência, talento, disciplina e uma loucura muito necessária para a personagem — diz Dennis.
Durante os ensaios, um pouco insegura, ela ainda ligou para Cacá Carvalho. “Laila, você vai tocar quase numa tradição”, disse Cacá. “Mas só vai poder fazer isso se fizer uma tradução da tradição. E, para fazer sua própria tradução, terá que fazer uma traição da tradição”. Confuso? Não para ela, que se jogou no papel, pelo qual tem colhido reconhecimento.
— Acho um privilégio ser parada na rua por causa do teatro. Não que não queira fazer TV. Quero fazer TV com o Dennis, quero fazer esses projetos do Luiz Fernando Carvalho, quero fazer cinema — diz a atriz, que nunca teve insegurança em relação à carreira, apesar de tempos mais bicudos, em que deu aulas de francês para complementar o orçamento.
Foi a língua paterna, aliás, que a aproximou do iluminador francês Hugo Mercier, que veio ao Brasil com o Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, em 2011. Laila atuou como intérprete do grupo. Em julho, casou-se com Hugo no cartório do Catete, com direito a cortejo na rua do elenco de “Gonzagão”. O ano de conquistas não a deixa menos preocupada com a instabilidade na carreira.
— Não tenho esse jeito carioca, de ir levando, esse jogo de cintura. Sou preocupada, tensa, neurótica — define a atriz, que gosta de ler livros sobre a origem do Universo e se diz “religiosa sem religião".
— Sou uma beata, na verdade. Creio em tudo. Na vida, no amor. Sou da Bahia, né? Lá a gente é metido.


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