ADRIANO SILVA
Ele não
faz trabalhos domésticos. Não tem gosto nem respeito por trabalhos manuais. Se
puder, atrapalha o trabalho de quem pega no pesado. Aprendi isso em criança: só
enfia o pé na lama com gosto quem nunca teve o desgosto de ir para o tanque na
área de serviço, depois, esfregar o tênis ou a chuteira debaixo de água fria.
Só deixa um resto de bebida secar no fundo de um copo quem nunca teve que fazer
o malabarismo de meter a mão lá dentro com uma esponja, com a barriga encostada
na pia, para tentar lavá-lo.
Trata-se de uma tradição
lusitana, ibérica, que vem sendo reproduzida aqui na colônia desde os tempos em
que os negros carregavam em barris, nas costas, a toilete dos seus
proprietários, e eram chamados de “tigres” – porque os excrementos lhes caíam
sobre as costas, formando listras que lembravam a pelagem do animal. O perfeito
idiota de classe média brasileiro, ou PICMB, não ajuda em casa também por
influência da mamãe, que nunca deixou que ele participasse das tarefas – nem
mesmo por ou tirar uma mesa, nem mesmo arrumar a própria cama. Ele atira suas
coisas pela casa, no chão, em qualquer lugar, e as deixa lá, pelo caminho. Não
é com ele. Ele foi criado irresponsável e inconsequente. É o tipo de cara que
pede um copo d’água deitado no sofá. E não faz nenhuma questão de mudar. O
PICMB é um especialista em não fazer, em fazer de conta, em empurrar com a
barriga, em se fazer de morto. Ele sabe que alguém fará por ele. Então ele se
desenvolveu um sujeito preguiçoso. Folgado. Que se escora nos outros, não reconhece
obrigações e que adora levar vantagem. Esse é o seu esporte predileto –
transformar quem o cerca em seus otários particulares.
O tempo do perfeito idiota de
classe média brasileiro vale mais que o das demais pessoas. É a mãe que fura a
fila de carros no colégio dos filhos. É a moça que estaciona em vaga para
deficientes ou para idosos no shopping. É o casal que atrasa uma hora num
jantar com os amigos. A lei e as regras só valem para os outros. O PICMB não
aceita restrições. Para ele, só privilégios e prerrogativas. Um direito divino
– porque ele é melhor que todos os outros. É um adepto do vale tudo social, do
cada um por si e do seja o que deus quiser. Ele só tem olhos para o próprio
umbigo e os únicos interesses válidos são os seus.
O PICMB é o parâmetro de tudo.
Quanto mais alguém for diferente dele, mais errado esse alguém estará. Ele tem
preconceito contra pretos, pardos, pobres, nordestinos, baixos, gordos, gente
do interior, gente que mora longe. E ele é sexista para caramba. Mesma lógica:
quem não é da sua tribo, do seu quintal, é torto. E às vezes até quem é da
tribo entra na moenda dos seus pré-julgamentos e da sua maledicência. A
discriminação também é um jeito de você se tornar externo, e oposto, a um
padrão que reconhece em si mas de que não gosta. É quando o narigudo se insurge
contra narizes grandes. O PICMB adora isso.
O perfeito idiota de classe
média brasileiro vai para Orlando sempre que pode. Acha Miami o lugar mais
incrível do mundo. Acha a Europa chata. E a Ásia, um planeta esquisito com
gente estranha e amarela que não lhe interessa. Há um tempo, o PICMB descobriu
Nova York – para onde vai exclusivamente para comprar. Ficou meia hora dentro
do Metropolitan, uma vez, mas achou aquilo aborrecido demais. Come pizza no
Sbarro. Joga lixo no chão. Só anda de táxi – metrô, com a galera, nem em
Manhattan. Nos anos 90, comprava camiseta no Hard Rock Cafe. Hoje virou um
sacoleiro em lojas com Abercrombie & Fitch e Tommy Hillfiger. Depois de
toda a farra, ainda troca cotoveladas no free shop para comprar uísque,
perfume, chocolate e maquiagem. O PICMB é, sobretudo, um cara cafona. Usa
roupas de polo sem saber o lado por onde se monta num cavalo. Nem sabe que
aquelas roupas são de polo. Ou que polo é um esporte.
O PICMB adora pagar caro. Faz
questão. Não apenas porque, para ele, caro é sinônimo de bom. Mas,
principalmente, porque caro é sinônimo de “cheguei lá” e “eu posso” e “veja o
quanto eu paguei nesse relógio ou nessa calça da Diesel”. Ele exibe marcas como
penduricalhos numa árvore de natal. É assim que se mostra para os outros. Se
pudesse, deixaria as etiquetas presas aos itens do vestuário e aos acessórios
que carrega. O PICMB é jeca. É brega. Compra para se afirmar, para compensar o
vazio e as frustrações, para se expressar de algum modo. O perfeito idiota de
classe média brasileiro não se sente idiota pagando 4 000 reais por um console
de vídeo game que custa 400 dólares lá fora. Nem acha um acinte pagar 100 000
reais por um carro que vale 25 000 dólares. Essa é a sua religião. Ele não se importa
de ficar no vermelho – a preocupação com ter as contas em dias é para os
fracos. Ele é o protótipo do novo rico burro. Do sujeito que acha que o bolso
cheio pode compensar uma cabeça vazia.
O PICMB é cleptomaníaco. Sua
obsessão por ter, e sua mania de locupletação material, lhe fazem roubar roupão
de hotel e garrafinha de bebida do avião e amostra grátis de perfume em loja de
departamento. Ele pega qualquer amostra de produto que esteja sendo ofertada
numa degustação no supermercado. Mesmo que não goste daquilo. O PICMB adora
boca livre e hotéis “all inclusive”. Ele adora camarote – quando ele consegue
sentir o sangue azul fluindo em suas veias. Ele é a tradução perfeito do que é
um pequeno burguês.
O perfeito idiota de classe
média brasileiro entende Annita. Vibra com Latino. Seu mundo cabe dentro do
imaginário do sertanejo romântico. Ele adora shows megaproduzidos, com
pirotecnia, luzes e muita coreografia, cujos ingressos custem mais de 500 reais
– mesmo que ele não conheça o artista. Ele não se importa de pagar uma taxa de
conveniência escorchante para comprar esse ingresso da maneira mais barata para
quem lhe vendeu – pela internet.
E o PICMB detesta ler. Comprou
50 Tons para a mulher. E um livro de autoajuda para si mesmo. Mas agora que a
novela está boa ficou difícil achar tempo para ler.
Adriano Silva é sócio diretor da The Factory e da Damnworks. Fundou a Spicy Media e trouxe o Gizmodo ao Brasil. Foi Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo, e Diretor de Redação da Superinteressante, na Editora Abril. Tem um MBA pela Universidade de Kyoto, Japão. Tem livros e faz palestras sobre Carreira & Vida Executiva, Empreendedorismo & Mundo Corporativo e Revolução Digital – suas obsessões. Mas também escreve sobre outros assuntos no blog Manual de Ingenuidades.
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