1984, o ano que não terminou
- Enquanto o país discute protestos, filme ambientado no calor das Diretas Já chama a atenção de festivais antes mesmo de ficar pronto
- Dirigido pelos baianos Cláudio Marques e Marília Hughes, o longa ‘Depois da chuva’ fala sobre um adolescente de Salvador que descobre a militância política e o amor.
RIO - Caio é um adolescente de Salvador, de índole libertária, cansado de se ver como marionete de políticos brasileiros. Entusiasmado com o clamor que vem das ruas, ele expressa sua indignação com os rumos da democracia na prova do colégio, onde participa ativamente da criação de um diretório acadêmico: “Estamos saindo de um período de exceção para uma nova era, a da Demencracia.”
O rapaz poderia estar entre os milhares de jovens que engrossaram as passeatas que pipocaram pelo país no mês passado, mas é o personagem central do drama “Depois da chuva”, ambientado em 1984, no calor das Diretas Já, movimento que pedia a volta das eleições diretas para presidente da República. Dirigido pelos baianos Cláudio Marques e Marília Hughes, o filme foi descoberto por olheiros de festivais de cinema estrangeiros e ganhou projeções especiais para agentes do mercado no Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires (abril) e no Festival de Cannes (maio), sob a legenda work in progress.
Iniciado há cinco anos, a partir da ordenação de memórias afetivas de Marques, “Depois da chuva” ganha um novo peso ao ficar pronto no momento em que o Brasil discute novamente sua capacidade de mobilização política. A coincidência só fez aumentar a curiosidade internacional pelo longa-metragem de baixo orçamento (R$ 1,4 milhão, resultado de recursos do Ministério da Cultura e do governo da Bahia), que traça paralelos com a atual ebulição popular.
Agora, seus realizadores esperam por um sinal dos principais festivais de cinema do mundo, como Veneza, Toronto, Roterdã e Sundance, que já haviam demonstrado interesse em tê-lo na programação e que, após os protestos de junho, desejam entender o que vem acontecendo no Brasil. O filme está previsto para chegar aos cinemas daqui em 2014, nos 50 anos do golpe militar e nos 30 anos das Diretas Já, com distribuição da Espaço Filmes, de Adhemar de Oliveira.
— Ficamos bastante surpresos com a coincidência, porque “Depois da chuva” é um filme que dialoga muito com o nosso presente, pois trata de questões discutidas em 1984, quando se acreditava na refundação do país, depois de 20 anos de ditadura militar — observa Marques, de 42 anos, que, junto com Marília, 35, foi listado pela “Variety”, a bíblia do mercado audiovisual americano, em sua edição de Cannes, como talento latino-americano em que a Europa deveria prestar atenção em 2013. — É imprescindível que lancemos um olhar sobre esse momento transformador e suas consequências.
A ideia de “Depois da chuva” surgiu após várias conversas entre Marques e Marília, que já dirigiram juntos seis curtas-metragens. O diretor falava com entusiasmo sobre o ano de 1984, quando o país “experimentou uma rara sensação de liberdade coletiva”. O filme também recria o sentimento de decepção nacional, quando o povo, que “sonhava com Tancredo Neves na presidência, acordou com José Sarney, presidente da Arena, em Brasília, no seu lugar”. Nesse sentido, o filme, segundo Marques, funciona também como um alerta, visto que expressa, como 30 anos atrás, o sentimento de descrença em relação a partidos e alianças partidárias.
— Precisamos tomar cuidado para que essa indignação que está nas ruas do Brasil de hoje não caia de novo no jogo da política medíocre, limitando os desejos da população, que, tanto lá atrás quanto agora, só quer uma vida melhor — observa Marques.
Marília lembra que o clima de transformação política de “Depois da chuva” serve de pano de fundo para as transformações pessoais do protagonista, interpretado pelo estreante Pedro Maia. O despertar político de Caio é acompanhado pela descoberta do primeiro amor. O roteiro, assinado por Marques, também tangencia outros temas que marcaram a década de 1980, como o começo da epidemia da Aids, que estancou a revolução sexual iniciada nos anos 1970, e a ameaça de uma guerra nuclear.
— Desde o início, quando o Cláudio me falava sobre as experiências naquele período, eu achava que daria um bom enredo de filme. Muita coisa foi inventada, claro, para não ficar próximo demais da vida particular dele, e também para que não virar uma obra muito didática sobre o período. Os acontecimentos políticos entram na história de Caio de maneira sutil, em meio a suas próprias descobertas pessoais — avisa Marília.
História universal
A história de “Depois da chuva” é quase totalmente ambientada entre os casarões e prédios abandonados do centro histórico de Salvador — um deles serve de ponto de encontro de intelectuais anarquistas frequentado por Caio. O personagem se une aos anarquistas em um programa de rádio pirata, por intermédio do qual eles exortam os moradores da cidade a ir para as ruas: “Esqueça essa história de eleição direta, nossa ação é nas ruas! Vamos invadir os casarões abandonados!” Trinta anos depois, o centro histórico é o mesmo.
— Hoje, temos mais 1,5 mil prédios abandonados naquela região. A cidade parece atemporal em suas questões — diz Marques.
A despeito de suas particularidades políticas, “Depois da chuva” é um filme dirigido a todo tipo de plateia. A seu favor, há também o fato de ser um raro exemplar do cinema brasileiro que explora esse importante período de transição do país. Marques tem uma explicação para isso:
— A gente já fez muito filme sobre a ditadura militar e suas consequências, mas deixou de lado o momento de passagem para a redemocratização porque, no fundo, foi um instante de profunda frustração. É como se as pessoas quisessem esquecê-lo — argumenta o diretor. — Mas, por ser um filme jovem, sobre um jovem com uma energia muito grande, é capaz de seduzir o espectador, independentemente de se gostar ou não de política. É uma história de formação, e isso é universal.
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