António Damásio: o neurocientista põe a mão na consciência
Foto: Pedro Cunha
Um dos maiores mistérios da natureza está dentro da cabeça de cada um de nós. Como é que o nosso cérebro gera a consciência? Como consegue Articular a nossa percepção do mundo com o nosso sentir do mundo e de nós próprios? Como fabrica subjectividade, esse atributo exclusivamente humano da mente consciente?
Há quem diga que o problema de saber como a consciência é construída pelo cérebro humano é demasiado complexo para ser resolvido... pelo cérebro humano.
O neurocientista português António Damásio — um dos mais brilhantes investigadores do mundo na área do cérebro — não concorda: a prova disso é que tem dedicado a sua vida ao estudo das bases biológicas da consciência e do papel das emoções na consciência, na tomada de decisão ou no sentido moral. Todas elas áreas que, até não há muito tempo, eram consideradas totalmente inacessíveis aos métodos da experimentação no laboratório.
Para António Damásio, coisas à partida tão distantes da ciência “dura” como a música ou as artes são na realidade indissociáveis da problemática das bases neurais da consciência: como explicar de outra forma de onde nos vem essa nossa tão natural capacidade de nos emocionarmos com uma peça de Bach, com uma paisagem — ou com o azul do mar?
Há muitos anos, António Damásio, hoje com 66 anos, emigrou de Portugal para os EUA — primeiro para o Iowa e mais tarde para a costa oeste, onde hoje dirige com a mulher, Hanna Damásio, o Brain and Creativity Institute, na Universidade da Califórnia do Sul (o nome do instituto é revelador).
Na sua passagem por Lisboa, no início deste mês, a Pública falou com ele sobre a teoria da consciência que apresenta no seu último livro, recentemente editado em Portugal — e também de como surgiu a sua paixão pelas neurociências, do dia-a-dia do seu trabalho, do seu gosto pela escrita e de muito mais.
O seu eu autobiográfico, para usarmos uma das suas expressões, conta que foi o historiador Joel Serrão, então seu professor, que lhe disse, um pouco inesperadamente, para se dedicar à neurologia. Nesta entrevista diz aos jovens que, para ser cientista, é preciso saber tolerar a solidão intelectual. Ele, que tem sempre o seu “dueto” com Hanna, explica que as ideias da última obra, O Livro da Consciência (Temas e Debates), levaram dez anos a amadurecer.
Por que é que se dedicou ao estudo do cérebro? Foi por causa de livros que leu ou houve algum professor que o fez apaixonar-se pelo tema?
Foi uma combinação de factores. Um prende-se com o meu interesse pelos mecanismos e com a curiosa transição que me fez passar dos mecanismos dos motores — que eram a minha paixão quando tinha dez anos — para os mecanismos da mente. Não faço ideia nenhuma da maneira de como isso aconteceu, mas sei que a certa altura — devia eu ter à volta de 15 anos —, ainda sem pensar de todo no cérebro, fiquei obcecado pelos mecanismos mentais. E achava que, para abordar essas questões — aí a influência foi com certeza literária —, teria de me tornar escritor ou cineasta. Isso fazia sentido, visto que também tinha uma grande paixão pela literatura e pelo cinema. Mas depois, no liceu — em Portugal —, tive como professor um filósofo chamado Joel Serrão. Era um professor magnífico — ensinava História e Filosofia — e eu de vez em quando conversava com ele. Um dia, falei-lhe do que queria fazer e disse-lhe que estava a tentar decidir se ia escolher a via literária ou científica no liceu. Ele ouviu-me e respondeu: “O que tu queres ser é neurologista.” “Ah, disse eu, neurologista. E porquê?"
"A questão é que vieram daí uma quantidade de textos que ele achou que eu devia ler e, em particular, a recomendação de ler um livro do Egas Moniz. Tudo isto aconteceu, lembro-me muito bem, quando eu tinha 16 anos — e, depois de ter pensado bastante no assunto, decidi que ia para Medicina e que ia ser neurologista. Era a via natural. Foi uma decisão que nunca se alterou. Quando entrei para a faculdade, lembro-me de que as pessoas me diziam: “Não vais nada ser neurologista, vais ser cirurgião plástico.” “Veremos”, respondia eu. E acabei mesmo por me tornar neurologista. Claro que fui ficando cada vez mais contente com a minha escolha, porque de facto correspondia totalmente àquilo que me interessava.
Como trabalha? Como formula as suas hipóteses? É com base na sua própria investigação, mas também nos resultados dos outros?
São precisas as duas coisas. Há resultados que são nossos, obtidos no meu laboratório, e há resultados que são de outros e que motivam novas experiências no meu laboratório. Ou que motivam reflexões. É uma interacção extremamente dinâmica. Não há só uma linha de investigação, há muitas, a entrecruzarem-se constantemente.
Quando tem uma ideia ou uma formulação, discute-as com outros? Ou precisa de se fechar no seu gabinete e de pensar sozinho?
Geralmente, preciso de ambas as coisas. É raro que haja ideias que não sejam muito rapidamente discutidas com a Hanna [Damásio]. Portanto, logo ali começa um dueto.
O diálogo com a sua mulher Hanna é essencial.
Absolutamente. Sobretudo no aspecto experimental, porque eu tenho muito mais capacidade teórica do que experimental e ela tem uma enorme capacidade experimental. Imagina imediatamente as experiências que podem ser feitas, é uma das coisas que gosta imenso de fazer. Portanto, estabelece-se aí imediatamente um diálogo. Também há uma fase de apuramento e, a seguir, organizo uma espécie de workshop, uma série de reuniões de laboratório durante as quais o nosso grupo apresenta as novas ideias para as testar. Eu gosto de convidar as pessoas a fazer o shooting down das ideias — agradavelmente, claro, não de forma agressiva. A colocar perguntas para tentarmos avançar.
Quais são as coisas de que mais gosta no processo de investigação? E aquelas de que não gosta?
As coisas de que não gosto... Os tempos mortos. Por exemplo, quando estamos a começar uma nova experiência. Fazemos a primeira e corre bem, mas a segunda já não corre tão bem. Portanto, é preciso fazer uma terceira. A nossa investigação é uma investigação em seres humanos (que podem ser doentes neurológicos ou não). Por isso, não é uma investigação em que se possa dizer aos participantes para estarem lá quando nos convém. As coisas demoram o seu tempo e há um intervalo entre o momento em que a nossa ideia já é sufi cientemente clara para ser testada e o momento em que fi nalizamos os testes. Esse é o aspecto menos agradável. Aliás, eu costumo dizer aos estudantes mais novos, que pedem para fazer uma rotação pelo nosso instituto, que é muito bom ver como se faz investigação, porque, se pensam que querem ser cientistas, têm de ver se são capazes de tolerar os tempos mortos da ciência. Não é todos os dias que há resultados fantásticos. Nem tudo é muito excitante e há dias e dias em que não acontece nada. É preciso ter paciência e conseguir tolerar a sua própria solidão intelectual. Se isso não é possível, não vale a pena tentar ser cientista.
E as coisas de que mais gosta? Há alturas em que algo faz clique?
Há, sim. Aquilo de que mais gosto é de entrever uma possibilidade — quando, no meio de uma discussão, de repente se tem um momento de compreensão (um haha moment) em que se vê a possibilidade de uma interpretação ou se entrevê aquilo que devemos procurar. Isso é um grande prazer. Um outro prazer enorme é ser capaz de escrever uma boa interpretação dos resultados. Gosto de escrever e gosto de conseguir explicar bem o que penso. Não é só obter o resultado e plop! O resultado precisa de ser trabalhado e precisa de ser escrito de forma a que também se torne agradável para o leitor. Não há razão nenhuma para que os artigos científicos sejam escritos de forma maçadora, num mau estilo ou numa língua pouco trabalhada. Devem ser tão bem escritos como as peças literárias. Essa é outra fonte de prazer do meu trabalho.
Há duas décadas, as neurociências não estudavam nem as emoções nem a consciência, que pareciam estar fora do alcance da biologia. Hoje, ainda há muitos cépticos que continuam a pensar que não é possível abordá-las pelo lado das bases neurais?
Há, mas há menos. Por exemplo, dentro da filosofia, que tradicionalmente era o bastião dos que não acreditavam que se pudesse estudar a mente pela via neural, há hoje em dia muitos jovens que estudam filosofia e que querem estudar neurociência. Tudo isso está a mudar, o que por outro lado também provoca, por parte de alguns filósofos mais tradicionais, uma enorme reacção de irritação, porque de certo modo acham que a neurociência compete com a filosofia tradicional. Ficaria espantadíssimo se, após a leitura do meu novo livro, não houvesse alguns filósofos a escrever que tudo isto é horrível, que não faz sentido nenhum estar a abordar a mente através da neurociência, que é superreducionista e que não está verdadeiramente ligado aos problemas centrais. Um argumento, quanto a mim, insustentável. Mas, hoje em dia, há também pessoas que suspeitam ou que temem que tanta biologia, que uma abordagem tão completamente biológica do ser humano, possa de algum modo reduzir a dignidade humana. No meu livro, toco várias vezes nesse problema para dizer que é exactamente o contrário que acontece. Quanto mais estudamos a biologia, tanto ao nível de uma simples célula como dos tecidos ou dos organismos inteiros, mais espantoso é o que encontramos. Espantoso pela riqueza da organização, pela complexidade, pela forma extraordinária como umas células que nem cérebro possuem antecipam os valores fisiológicos e os sistemas necessários à regulação da vida. É verdadeiramente extraordinário e a única coisa que nos deve causar é espanto. Por isso, não vejo em que é que a abordagem biológica diminui a dignidade humana, antes pelo contrário. Acho que, quando percebemos a beleza dessa vida nos pormenores mais pequenos e também no grande alcance dos grandes sistemas, passamos a ter muito mais respeito por aquilo que é a vida. Mas há aí um problema e de certeza que vamos ver pessoas, como acontece de cada vez que são publicados livros deste tipo que penetram um pouco mais no grande público, que acham que pode ser uma terrível ameaça para o ser humano. Não é.
Qual é o derradeiro objectivo das suas pesquisas?
Penso que não há um derradeiro objectivo. Há uma tentativa, sempre renovada, de esclarecer problemas e, no fundo, os problemas que me interessam são sempre os mesmos. O problema de como as emoções funcionam, de como os sentimentos se estabelecem. Isso prende-se com uma outra grande questão: como é que nasce a menc te, como é que nasce o eu e como é que se constrói a mente consciente.
Em que consiste a teoria da construção da consciência humana que apresentou agora em O Livro da Consciência, editado há poucas semanas em Portugal?
Em matéria de conceitos, a minha visão da construção da consciência tem muitas semelhanças com aquilo que já escrevi anteriormente [nomeadamente, em O Sentimento de Si]: há um “proto-eu”, não consciente, que surge ao nível do tronco cerebral, um “eu nuclear” e um eu autobiográfico (ver nestas páginas “Os patamares da consciência”). A esse nível, as ideias são exactamente as mesmas que já expus há uma dezena de anos. Mas os mecanismos que proponho agora são diferentes.
A consciência aparece a que nível?
Aparece quando aparece o eu nuclear e depois oscila constantemente entre o eu nuclear e o eu autobiográfico. Neste momento, ambos temos um eu nuclear a funcionar e o nosso eu autobiográfico está em pano de fundo. Mas quando foi preciso — por exemplo, quando me perguntou por que é que me dediquei ao estudo do cérebro, o meu eu autobiográfico funcionou completamente e fui buscar uma série de imagens que têm a ver com a minha vida entre os 10 e os 16 anos. A seguir, o meu eu autobiográfico regressou aos bastidores e aquilo que conta agora é o eu nuclear, são todos estes conteúdos com que eu estou a jogar neste momento para responder à sua última pergunta.
Mas, antes de se tornar consciente, como é que nasce a mente?
A criação da mente propriamente dita reside na capacidade que o cérebro tem de criar mapas neurais que vão dar origem a imagens. A ideia não é nova: vários colegas a têm abordado. Gerald Edelman [conhecido neurocientista norte-americano], por exemplo, é muito claro sobre a necessidade de existirem mapas neurais no cérebro. É dessa capacidade de gerar mapas neurais que surgem os conteúdos principais da mente: as imagens visuais, auditivas, olfactivas, tácteis — e, o que é muito importante, as imagens que nos vêm do nosso próprio corpo. Estas imagens, estes sentimentos básicos que temos do nosso próprio corpo — e que eu chamo agora sentimentos primordiais — vão depois ajudar a construir o eu.
As imagens do nosso próprio corpo são sentimentos?
Sim, só que os mapas do corpo são diferentes dos mapas do mundo exterior. De facto, se há algo de novo no meu último livro — algo que penso há muito tempo, mas que só agora consegui finalmente verbalizar numa forma que me agrada —, consiste em dizer que as imagens do corpo são imagens de uma natureza diferente das imagens do exterior. Porquê? Porque são imagens que começam a ser geradas ao nível do tronco cerebral, numa região do cérebro que está naquilo que eu descrevo no livro como uma união, uma fusão praticamente completa com o corpo. E o que isso vai permitir do ponto de vista teórico — e também prático, julgo eu — é fazer com que essas imagens não sejam só imagens cognitivas, divorciadas do seu objecto, mas sim imagens ligadas ao seu objecto, que é o corpo. Ou seja, imagens sentidas. Ora isso prende-se com um problema absolutamente central, que inúmeros filósofos e neurocientistas têm enfrentado. É o problema dos qualia — a dificuldade de explicar que nós não só temos imagens, mas que também sentimos essas imagens. Quando olhamos para o mar, não vemos apenas o azul do mar, sentimos que estamos a viver esse momento de percepção. Muitas pessoas têm dito que isto é impossível de compreender, que é algo que está fora do campo das neurociências. Mas eu acho que existe a possibilidade de que o modelo que acabei de descrever resolva o problema dos qualia. É óptimo vislumbrar a possibilidade de ligar coerentemente os sentimentos e a consciência. Por exemplo, neste momento, você tem uma imagem de mim, que está a construir a nível visual, mas também a nível auditivo. Mas há também uma outra imagem que surge ao mesmo tempo na sua mente: a imagem do seu próprio organismo, que está a ser gerada automaticamente no seu tronco cerebral e representada na sua ínsula [uma região do córtex cerebral]. Ora, essa imagem é uma imagem que, por estar ligada a si, está ao mesmo tempo a produzir um mapa que é sentimento. E é aí que me parece que está o grande segredo de criar uma consciência sentida e não uma consciência de autómato.
Disse que os mecanismos cerebrais que propõe agora para a emergência da consciência são diferentes...
Sim. Há uma dezena de anos, julgava que o mecanismo com que se constrói o eu nuclear requeria a participação do córtex cerebral [a parte mais evoluída do cérebro, que desempenha as funções cognitivas]. Agora, penso que o tronco cerebral consegue perfeitamente fazer isso sozinho. Isso não quer dizer que o córtex cerebral tenha ido para as urtigas. Continua a haver
uma interacção entre o córtex cerebral e o tronco cerebral. Mas a visão de um córtex cerebral a fazer tudo parece-me extraordinariamente errada. Não posso dizer que alguma vez tenha acreditado completamente nisso, mas embora tenha tido sempre a suspeita de que havia coisas muito importantes para estudar no tronco cerebral, parecia-me sempre que o processo podia ser explicado quase completamente ao nível do córtex. Contudo, já no ano 2000, lembro-me de ter escrito um trabalho que apresentámos na Nature e no qual transparecia cada vez mais que o subcórtex tinha de ter um grande papel. No fundo, demorou dez anos a amadurecer essas ideias e a ter novos dados. Quanto ao eu autobiográfico, sempre pensei que dependia sobretudo do córtex cerebral e continuo a pensá-lo, mas hoje acho que depende sobretudo de uma região muito particular do córtex — o córtex posteromedial ou PMC — e de uma interacção, que agora me parece vislumbrar, entre o córtex e o tronco cerebral. Isto é muito diferente de aquilo que eu tinha proposto há uma dezena de anos.
Quando fala em subcórtex, trata-se de que estruturas?
Do tronco cerebral e do tálamo. O tálamo, tal como o apresento no meu livro, é um sistema intermédio, porque para chegar do tronco cerebral ao córtex cerebral é preciso passar pelo tálamo. O córtex cerebral tem maneira de chegar ao tronco cerebral sem necessariamente utilizar o tálamo, mas nas vias ascendentes o tronco cerebral tem de comunicar muito através do tálamo.
O PMC já faz parte do córtex.
Sim, mas de um córtex mais antigo, que recebe mensagens do tronco cerebral. No fundo, temos a produção de sentimentos primordiais, depois a produção do que eu chamo “sentimentos de saber” e depois, a certo ponto, quando já há uma enorme quantidade de conteúdos relativos, por exemplo, à nossa biografia, é necessário coordenar esses conteúdos — coordenar a maneira como eles são apresentados à maquinaria dos sentimentos para que possam ser beneficiados por um sentimento que os distinga. O que é extraordinariamente importante. O PMC é precisamente um agregado de regiões que estão organizadas de tal maneira que têm a capacidade de muito rapidamente chegar a um grande número de sítios do cérebro e reevocar as imagens que nos vão permitir aceder rapidamente à nossa autobiografia. Desempenha um papel de grande coordenador. Há uma quantidade de novos dados sobre o PMC e, de facto, as coisas começam a encaixar bem.
Também inclui no seu modelo uma estrutura chamada ínsula. Ela também faz parte do córtex?
Também. A ínsula é um córtex com uma parte antiga e uma parte mais moderna e permite repetir com maior pormenor aquilo que já está no tronco cerebral em matéria de sentimentos. Aliás, aí é que reside outra grande diferença na minha visão das coisas: na visão mais tradicional, os sinais sobre o corpo juntam-se no tronco cerebral e são depois relançados sobre a ínsula — e é na ínsula que aparece a plataforma dos sentimentos. Na minha visão actual, os sinais estão no tronco cerebral. O tronco cerebral faz os seus primeiros mapas — que são muito simples —, transforma esses sinais e inicia o sentimento. Depois, envia todos esses sinais para a ínsula, onde os mapas são completados e onde existe a possibilidade de os relacionar com os objectos que inicialmente desencadearam o processo — e que podem ser visuais, auditivos, etc. Por exemplo, se você ouvir uma grande peça de Bach, desencadeia-se um processo auditivo. Esse processo auditivo vai provocar uma série de emoções e de sentimentos; as transformações ligadas às emoções e aos sentimentos vão aparecer mapeadas primeiro pelo tronco cerebral; depois, o tronco cerebral vai transferi-los para o córtex, onde se irão ligar ao iniciador de todo o processo, que foi a audição da peça musical do sr. Bach. Esta visão não exclui nenhum sistema, mas enriquece a maquinaria cerebral que fornece dados ao córtex.
Há quem diga que nunca se vai conseguir saber exactamente como é que cérebro humano gera a consciência. Acha que o problema se pode de facto revelar demasiado complexo?
É perfeitamente possível, mas é de facto provável que continuemos a progredir. Se olharmos para dez anos atrás, ou 20, ou 50, a verdade é que não se sabia então uma grande parte do que se sabe hoje. Praticamente toda a marcha da ciência tem desmentido os velhos do Restelo que não acreditavam que se pudesse descobrir coisa nenhuma. Tem havido uma constante negação desse princípio. Penso que as pessoas que apostam que não vamos conseguir se arriscam a perder a aposta. Dito isso, não quer dizer que eu tenha qualquer certeza de que todos os mistérios do Universo serão revelados. É bem possível que seja difícil ultrapassar certos muros do mistério da consciência — mas, até agora, isso não aconteceu. Todos os anos fazemos o mistério recuar um bocadinho. É por isso que devemos continuar a tentar.
O que é que vai ser preciso mostrar para confirmar a sua teoria da consciência? O que é que está pela frente?
Temos de pensar no imediato. Temos de pensar em técnicas — no caso dos seres humanos, em técnicas de imagem funcional e algumas de imagens estruturais — que nos permitam confirmar passo a passo algumas das coisas que no quadro teórico actual ainda são hipotéticas. Depois, vamos ter de fazer experiências em animais de várias espécies, incluindo com certeza primatas não humanos. Certas técnicas de imagem têm-se revelado extraordinariamente poderosas e surgem constantemente pequenas modificações de software que nos vão permitir chegar a resultados mais fortes.
Acha que a Internet e a maneira como as pessoas — e principalmente as crianças — interagem hoje com os computadores podem estar a alterar o cérebro humano? De que maneira?
De variadíssimas formas. Não há dúvida de que a rapidez de processamento cognitivo está a aumentar sob o efeito do multitasking e do bombardeamento de sinais, em geral visuais. Isto influi sobre a atenção e seria improvável que não levasse a uma modificação da forma como o nosso cérebro funciona e como concebemos o mundo. Mas claro que isto é pura especulação.
Isso vai de alguma forma alterar a nossa consciência?
Não... Vai alterar a superfície dessa consciência, vai alterar a velocidade com que as coisas funcionam.
Graças a técnicas de imagem, conseguiu-se recentemente distinguir certos conceitos no momento em que se formam no cérebro de uma pessoa (uma planta vs. um rosto, por exemplo). Isso parece assustador quando se pensa que os militares, a polícia e até os especialistas de publicidade ou de marketing gostariam todos de poder entrar na nossa cabeça. Vai ser possível um dia alguém “ler” os nossos pensamentos?
Eu não ficaria extraordinariamente preocupado, porque existem limitações muito grandes. Uma coisa é ser capaz, num trabalho experimental, cuidadoso, demorado, de concluir que é mais provável que uma pessoa esteja a pensar nos pijamas do gato do que no gato propriamente dito. Mas daí a ter qualquer espécie de certeza num teste que fosse feito com exactamente essas mesmas técnicas na população geral é um grande passo. Estamos a falar em coisas curiosas, mas que têm muito a ver com probabilidades de ser uma coisa ou a outra. Mas eu tenho a impressão de que os militares e a polícia não querem jogar com probabilidades, querem ter certezas. O que seria aterrador é que não se percebesse aquilo que as técnicas permitem e se confundissem probabilidades com certezas. Aí, claro, teríamos um mundo perfeitamente kafkiano ou pior. É preciso que as pessoas percebam isso.
Há quem diga que o problema de saber como a consciência é construída pelo cérebro humano é demasiado complexo para ser resolvido... pelo cérebro humano.
O neurocientista português António Damásio — um dos mais brilhantes investigadores do mundo na área do cérebro — não concorda: a prova disso é que tem dedicado a sua vida ao estudo das bases biológicas da consciência e do papel das emoções na consciência, na tomada de decisão ou no sentido moral. Todas elas áreas que, até não há muito tempo, eram consideradas totalmente inacessíveis aos métodos da experimentação no laboratório.
Para António Damásio, coisas à partida tão distantes da ciência “dura” como a música ou as artes são na realidade indissociáveis da problemática das bases neurais da consciência: como explicar de outra forma de onde nos vem essa nossa tão natural capacidade de nos emocionarmos com uma peça de Bach, com uma paisagem — ou com o azul do mar?
Há muitos anos, António Damásio, hoje com 66 anos, emigrou de Portugal para os EUA — primeiro para o Iowa e mais tarde para a costa oeste, onde hoje dirige com a mulher, Hanna Damásio, o Brain and Creativity Institute, na Universidade da Califórnia do Sul (o nome do instituto é revelador).
Na sua passagem por Lisboa, no início deste mês, a Pública falou com ele sobre a teoria da consciência que apresenta no seu último livro, recentemente editado em Portugal — e também de como surgiu a sua paixão pelas neurociências, do dia-a-dia do seu trabalho, do seu gosto pela escrita e de muito mais.
O seu eu autobiográfico, para usarmos uma das suas expressões, conta que foi o historiador Joel Serrão, então seu professor, que lhe disse, um pouco inesperadamente, para se dedicar à neurologia. Nesta entrevista diz aos jovens que, para ser cientista, é preciso saber tolerar a solidão intelectual. Ele, que tem sempre o seu “dueto” com Hanna, explica que as ideias da última obra, O Livro da Consciência (Temas e Debates), levaram dez anos a amadurecer.
Por que é que se dedicou ao estudo do cérebro? Foi por causa de livros que leu ou houve algum professor que o fez apaixonar-se pelo tema?
Foi uma combinação de factores. Um prende-se com o meu interesse pelos mecanismos e com a curiosa transição que me fez passar dos mecanismos dos motores — que eram a minha paixão quando tinha dez anos — para os mecanismos da mente. Não faço ideia nenhuma da maneira de como isso aconteceu, mas sei que a certa altura — devia eu ter à volta de 15 anos —, ainda sem pensar de todo no cérebro, fiquei obcecado pelos mecanismos mentais. E achava que, para abordar essas questões — aí a influência foi com certeza literária —, teria de me tornar escritor ou cineasta. Isso fazia sentido, visto que também tinha uma grande paixão pela literatura e pelo cinema. Mas depois, no liceu — em Portugal —, tive como professor um filósofo chamado Joel Serrão. Era um professor magnífico — ensinava História e Filosofia — e eu de vez em quando conversava com ele. Um dia, falei-lhe do que queria fazer e disse-lhe que estava a tentar decidir se ia escolher a via literária ou científica no liceu. Ele ouviu-me e respondeu: “O que tu queres ser é neurologista.” “Ah, disse eu, neurologista. E porquê?"
"A questão é que vieram daí uma quantidade de textos que ele achou que eu devia ler e, em particular, a recomendação de ler um livro do Egas Moniz. Tudo isto aconteceu, lembro-me muito bem, quando eu tinha 16 anos — e, depois de ter pensado bastante no assunto, decidi que ia para Medicina e que ia ser neurologista. Era a via natural. Foi uma decisão que nunca se alterou. Quando entrei para a faculdade, lembro-me de que as pessoas me diziam: “Não vais nada ser neurologista, vais ser cirurgião plástico.” “Veremos”, respondia eu. E acabei mesmo por me tornar neurologista. Claro que fui ficando cada vez mais contente com a minha escolha, porque de facto correspondia totalmente àquilo que me interessava.
Como trabalha? Como formula as suas hipóteses? É com base na sua própria investigação, mas também nos resultados dos outros?
São precisas as duas coisas. Há resultados que são nossos, obtidos no meu laboratório, e há resultados que são de outros e que motivam novas experiências no meu laboratório. Ou que motivam reflexões. É uma interacção extremamente dinâmica. Não há só uma linha de investigação, há muitas, a entrecruzarem-se constantemente.
Quando tem uma ideia ou uma formulação, discute-as com outros? Ou precisa de se fechar no seu gabinete e de pensar sozinho?
Geralmente, preciso de ambas as coisas. É raro que haja ideias que não sejam muito rapidamente discutidas com a Hanna [Damásio]. Portanto, logo ali começa um dueto.
O diálogo com a sua mulher Hanna é essencial.
Absolutamente. Sobretudo no aspecto experimental, porque eu tenho muito mais capacidade teórica do que experimental e ela tem uma enorme capacidade experimental. Imagina imediatamente as experiências que podem ser feitas, é uma das coisas que gosta imenso de fazer. Portanto, estabelece-se aí imediatamente um diálogo. Também há uma fase de apuramento e, a seguir, organizo uma espécie de workshop, uma série de reuniões de laboratório durante as quais o nosso grupo apresenta as novas ideias para as testar. Eu gosto de convidar as pessoas a fazer o shooting down das ideias — agradavelmente, claro, não de forma agressiva. A colocar perguntas para tentarmos avançar.
Quais são as coisas de que mais gosta no processo de investigação? E aquelas de que não gosta?
As coisas de que não gosto... Os tempos mortos. Por exemplo, quando estamos a começar uma nova experiência. Fazemos a primeira e corre bem, mas a segunda já não corre tão bem. Portanto, é preciso fazer uma terceira. A nossa investigação é uma investigação em seres humanos (que podem ser doentes neurológicos ou não). Por isso, não é uma investigação em que se possa dizer aos participantes para estarem lá quando nos convém. As coisas demoram o seu tempo e há um intervalo entre o momento em que a nossa ideia já é sufi cientemente clara para ser testada e o momento em que fi nalizamos os testes. Esse é o aspecto menos agradável. Aliás, eu costumo dizer aos estudantes mais novos, que pedem para fazer uma rotação pelo nosso instituto, que é muito bom ver como se faz investigação, porque, se pensam que querem ser cientistas, têm de ver se são capazes de tolerar os tempos mortos da ciência. Não é todos os dias que há resultados fantásticos. Nem tudo é muito excitante e há dias e dias em que não acontece nada. É preciso ter paciência e conseguir tolerar a sua própria solidão intelectual. Se isso não é possível, não vale a pena tentar ser cientista.
E as coisas de que mais gosta? Há alturas em que algo faz clique?
Há, sim. Aquilo de que mais gosto é de entrever uma possibilidade — quando, no meio de uma discussão, de repente se tem um momento de compreensão (um haha moment) em que se vê a possibilidade de uma interpretação ou se entrevê aquilo que devemos procurar. Isso é um grande prazer. Um outro prazer enorme é ser capaz de escrever uma boa interpretação dos resultados. Gosto de escrever e gosto de conseguir explicar bem o que penso. Não é só obter o resultado e plop! O resultado precisa de ser trabalhado e precisa de ser escrito de forma a que também se torne agradável para o leitor. Não há razão nenhuma para que os artigos científicos sejam escritos de forma maçadora, num mau estilo ou numa língua pouco trabalhada. Devem ser tão bem escritos como as peças literárias. Essa é outra fonte de prazer do meu trabalho.
Há duas décadas, as neurociências não estudavam nem as emoções nem a consciência, que pareciam estar fora do alcance da biologia. Hoje, ainda há muitos cépticos que continuam a pensar que não é possível abordá-las pelo lado das bases neurais?
Há, mas há menos. Por exemplo, dentro da filosofia, que tradicionalmente era o bastião dos que não acreditavam que se pudesse estudar a mente pela via neural, há hoje em dia muitos jovens que estudam filosofia e que querem estudar neurociência. Tudo isso está a mudar, o que por outro lado também provoca, por parte de alguns filósofos mais tradicionais, uma enorme reacção de irritação, porque de certo modo acham que a neurociência compete com a filosofia tradicional. Ficaria espantadíssimo se, após a leitura do meu novo livro, não houvesse alguns filósofos a escrever que tudo isto é horrível, que não faz sentido nenhum estar a abordar a mente através da neurociência, que é superreducionista e que não está verdadeiramente ligado aos problemas centrais. Um argumento, quanto a mim, insustentável. Mas, hoje em dia, há também pessoas que suspeitam ou que temem que tanta biologia, que uma abordagem tão completamente biológica do ser humano, possa de algum modo reduzir a dignidade humana. No meu livro, toco várias vezes nesse problema para dizer que é exactamente o contrário que acontece. Quanto mais estudamos a biologia, tanto ao nível de uma simples célula como dos tecidos ou dos organismos inteiros, mais espantoso é o que encontramos. Espantoso pela riqueza da organização, pela complexidade, pela forma extraordinária como umas células que nem cérebro possuem antecipam os valores fisiológicos e os sistemas necessários à regulação da vida. É verdadeiramente extraordinário e a única coisa que nos deve causar é espanto. Por isso, não vejo em que é que a abordagem biológica diminui a dignidade humana, antes pelo contrário. Acho que, quando percebemos a beleza dessa vida nos pormenores mais pequenos e também no grande alcance dos grandes sistemas, passamos a ter muito mais respeito por aquilo que é a vida. Mas há aí um problema e de certeza que vamos ver pessoas, como acontece de cada vez que são publicados livros deste tipo que penetram um pouco mais no grande público, que acham que pode ser uma terrível ameaça para o ser humano. Não é.
Qual é o derradeiro objectivo das suas pesquisas?
Penso que não há um derradeiro objectivo. Há uma tentativa, sempre renovada, de esclarecer problemas e, no fundo, os problemas que me interessam são sempre os mesmos. O problema de como as emoções funcionam, de como os sentimentos se estabelecem. Isso prende-se com uma outra grande questão: como é que nasce a menc te, como é que nasce o eu e como é que se constrói a mente consciente.
Em que consiste a teoria da construção da consciência humana que apresentou agora em O Livro da Consciência, editado há poucas semanas em Portugal?
Em matéria de conceitos, a minha visão da construção da consciência tem muitas semelhanças com aquilo que já escrevi anteriormente [nomeadamente, em O Sentimento de Si]: há um “proto-eu”, não consciente, que surge ao nível do tronco cerebral, um “eu nuclear” e um eu autobiográfico (ver nestas páginas “Os patamares da consciência”). A esse nível, as ideias são exactamente as mesmas que já expus há uma dezena de anos. Mas os mecanismos que proponho agora são diferentes.
A consciência aparece a que nível?
Aparece quando aparece o eu nuclear e depois oscila constantemente entre o eu nuclear e o eu autobiográfico. Neste momento, ambos temos um eu nuclear a funcionar e o nosso eu autobiográfico está em pano de fundo. Mas quando foi preciso — por exemplo, quando me perguntou por que é que me dediquei ao estudo do cérebro, o meu eu autobiográfico funcionou completamente e fui buscar uma série de imagens que têm a ver com a minha vida entre os 10 e os 16 anos. A seguir, o meu eu autobiográfico regressou aos bastidores e aquilo que conta agora é o eu nuclear, são todos estes conteúdos com que eu estou a jogar neste momento para responder à sua última pergunta.
Mas, antes de se tornar consciente, como é que nasce a mente?
A criação da mente propriamente dita reside na capacidade que o cérebro tem de criar mapas neurais que vão dar origem a imagens. A ideia não é nova: vários colegas a têm abordado. Gerald Edelman [conhecido neurocientista norte-americano], por exemplo, é muito claro sobre a necessidade de existirem mapas neurais no cérebro. É dessa capacidade de gerar mapas neurais que surgem os conteúdos principais da mente: as imagens visuais, auditivas, olfactivas, tácteis — e, o que é muito importante, as imagens que nos vêm do nosso próprio corpo. Estas imagens, estes sentimentos básicos que temos do nosso próprio corpo — e que eu chamo agora sentimentos primordiais — vão depois ajudar a construir o eu.
As imagens do nosso próprio corpo são sentimentos?
Sim, só que os mapas do corpo são diferentes dos mapas do mundo exterior. De facto, se há algo de novo no meu último livro — algo que penso há muito tempo, mas que só agora consegui finalmente verbalizar numa forma que me agrada —, consiste em dizer que as imagens do corpo são imagens de uma natureza diferente das imagens do exterior. Porquê? Porque são imagens que começam a ser geradas ao nível do tronco cerebral, numa região do cérebro que está naquilo que eu descrevo no livro como uma união, uma fusão praticamente completa com o corpo. E o que isso vai permitir do ponto de vista teórico — e também prático, julgo eu — é fazer com que essas imagens não sejam só imagens cognitivas, divorciadas do seu objecto, mas sim imagens ligadas ao seu objecto, que é o corpo. Ou seja, imagens sentidas. Ora isso prende-se com um problema absolutamente central, que inúmeros filósofos e neurocientistas têm enfrentado. É o problema dos qualia — a dificuldade de explicar que nós não só temos imagens, mas que também sentimos essas imagens. Quando olhamos para o mar, não vemos apenas o azul do mar, sentimos que estamos a viver esse momento de percepção. Muitas pessoas têm dito que isto é impossível de compreender, que é algo que está fora do campo das neurociências. Mas eu acho que existe a possibilidade de que o modelo que acabei de descrever resolva o problema dos qualia. É óptimo vislumbrar a possibilidade de ligar coerentemente os sentimentos e a consciência. Por exemplo, neste momento, você tem uma imagem de mim, que está a construir a nível visual, mas também a nível auditivo. Mas há também uma outra imagem que surge ao mesmo tempo na sua mente: a imagem do seu próprio organismo, que está a ser gerada automaticamente no seu tronco cerebral e representada na sua ínsula [uma região do córtex cerebral]. Ora, essa imagem é uma imagem que, por estar ligada a si, está ao mesmo tempo a produzir um mapa que é sentimento. E é aí que me parece que está o grande segredo de criar uma consciência sentida e não uma consciência de autómato.
Disse que os mecanismos cerebrais que propõe agora para a emergência da consciência são diferentes...
Sim. Há uma dezena de anos, julgava que o mecanismo com que se constrói o eu nuclear requeria a participação do córtex cerebral [a parte mais evoluída do cérebro, que desempenha as funções cognitivas]. Agora, penso que o tronco cerebral consegue perfeitamente fazer isso sozinho. Isso não quer dizer que o córtex cerebral tenha ido para as urtigas. Continua a haver
uma interacção entre o córtex cerebral e o tronco cerebral. Mas a visão de um córtex cerebral a fazer tudo parece-me extraordinariamente errada. Não posso dizer que alguma vez tenha acreditado completamente nisso, mas embora tenha tido sempre a suspeita de que havia coisas muito importantes para estudar no tronco cerebral, parecia-me sempre que o processo podia ser explicado quase completamente ao nível do córtex. Contudo, já no ano 2000, lembro-me de ter escrito um trabalho que apresentámos na Nature e no qual transparecia cada vez mais que o subcórtex tinha de ter um grande papel. No fundo, demorou dez anos a amadurecer essas ideias e a ter novos dados. Quanto ao eu autobiográfico, sempre pensei que dependia sobretudo do córtex cerebral e continuo a pensá-lo, mas hoje acho que depende sobretudo de uma região muito particular do córtex — o córtex posteromedial ou PMC — e de uma interacção, que agora me parece vislumbrar, entre o córtex e o tronco cerebral. Isto é muito diferente de aquilo que eu tinha proposto há uma dezena de anos.
Quando fala em subcórtex, trata-se de que estruturas?
Do tronco cerebral e do tálamo. O tálamo, tal como o apresento no meu livro, é um sistema intermédio, porque para chegar do tronco cerebral ao córtex cerebral é preciso passar pelo tálamo. O córtex cerebral tem maneira de chegar ao tronco cerebral sem necessariamente utilizar o tálamo, mas nas vias ascendentes o tronco cerebral tem de comunicar muito através do tálamo.
O PMC já faz parte do córtex.
Sim, mas de um córtex mais antigo, que recebe mensagens do tronco cerebral. No fundo, temos a produção de sentimentos primordiais, depois a produção do que eu chamo “sentimentos de saber” e depois, a certo ponto, quando já há uma enorme quantidade de conteúdos relativos, por exemplo, à nossa biografia, é necessário coordenar esses conteúdos — coordenar a maneira como eles são apresentados à maquinaria dos sentimentos para que possam ser beneficiados por um sentimento que os distinga. O que é extraordinariamente importante. O PMC é precisamente um agregado de regiões que estão organizadas de tal maneira que têm a capacidade de muito rapidamente chegar a um grande número de sítios do cérebro e reevocar as imagens que nos vão permitir aceder rapidamente à nossa autobiografia. Desempenha um papel de grande coordenador. Há uma quantidade de novos dados sobre o PMC e, de facto, as coisas começam a encaixar bem.
Também inclui no seu modelo uma estrutura chamada ínsula. Ela também faz parte do córtex?
Também. A ínsula é um córtex com uma parte antiga e uma parte mais moderna e permite repetir com maior pormenor aquilo que já está no tronco cerebral em matéria de sentimentos. Aliás, aí é que reside outra grande diferença na minha visão das coisas: na visão mais tradicional, os sinais sobre o corpo juntam-se no tronco cerebral e são depois relançados sobre a ínsula — e é na ínsula que aparece a plataforma dos sentimentos. Na minha visão actual, os sinais estão no tronco cerebral. O tronco cerebral faz os seus primeiros mapas — que são muito simples —, transforma esses sinais e inicia o sentimento. Depois, envia todos esses sinais para a ínsula, onde os mapas são completados e onde existe a possibilidade de os relacionar com os objectos que inicialmente desencadearam o processo — e que podem ser visuais, auditivos, etc. Por exemplo, se você ouvir uma grande peça de Bach, desencadeia-se um processo auditivo. Esse processo auditivo vai provocar uma série de emoções e de sentimentos; as transformações ligadas às emoções e aos sentimentos vão aparecer mapeadas primeiro pelo tronco cerebral; depois, o tronco cerebral vai transferi-los para o córtex, onde se irão ligar ao iniciador de todo o processo, que foi a audição da peça musical do sr. Bach. Esta visão não exclui nenhum sistema, mas enriquece a maquinaria cerebral que fornece dados ao córtex.
Há quem diga que nunca se vai conseguir saber exactamente como é que cérebro humano gera a consciência. Acha que o problema se pode de facto revelar demasiado complexo?
É perfeitamente possível, mas é de facto provável que continuemos a progredir. Se olharmos para dez anos atrás, ou 20, ou 50, a verdade é que não se sabia então uma grande parte do que se sabe hoje. Praticamente toda a marcha da ciência tem desmentido os velhos do Restelo que não acreditavam que se pudesse descobrir coisa nenhuma. Tem havido uma constante negação desse princípio. Penso que as pessoas que apostam que não vamos conseguir se arriscam a perder a aposta. Dito isso, não quer dizer que eu tenha qualquer certeza de que todos os mistérios do Universo serão revelados. É bem possível que seja difícil ultrapassar certos muros do mistério da consciência — mas, até agora, isso não aconteceu. Todos os anos fazemos o mistério recuar um bocadinho. É por isso que devemos continuar a tentar.
O que é que vai ser preciso mostrar para confirmar a sua teoria da consciência? O que é que está pela frente?
Temos de pensar no imediato. Temos de pensar em técnicas — no caso dos seres humanos, em técnicas de imagem funcional e algumas de imagens estruturais — que nos permitam confirmar passo a passo algumas das coisas que no quadro teórico actual ainda são hipotéticas. Depois, vamos ter de fazer experiências em animais de várias espécies, incluindo com certeza primatas não humanos. Certas técnicas de imagem têm-se revelado extraordinariamente poderosas e surgem constantemente pequenas modificações de software que nos vão permitir chegar a resultados mais fortes.
Acha que a Internet e a maneira como as pessoas — e principalmente as crianças — interagem hoje com os computadores podem estar a alterar o cérebro humano? De que maneira?
De variadíssimas formas. Não há dúvida de que a rapidez de processamento cognitivo está a aumentar sob o efeito do multitasking e do bombardeamento de sinais, em geral visuais. Isto influi sobre a atenção e seria improvável que não levasse a uma modificação da forma como o nosso cérebro funciona e como concebemos o mundo. Mas claro que isto é pura especulação.
Isso vai de alguma forma alterar a nossa consciência?
Não... Vai alterar a superfície dessa consciência, vai alterar a velocidade com que as coisas funcionam.
Graças a técnicas de imagem, conseguiu-se recentemente distinguir certos conceitos no momento em que se formam no cérebro de uma pessoa (uma planta vs. um rosto, por exemplo). Isso parece assustador quando se pensa que os militares, a polícia e até os especialistas de publicidade ou de marketing gostariam todos de poder entrar na nossa cabeça. Vai ser possível um dia alguém “ler” os nossos pensamentos?
Eu não ficaria extraordinariamente preocupado, porque existem limitações muito grandes. Uma coisa é ser capaz, num trabalho experimental, cuidadoso, demorado, de concluir que é mais provável que uma pessoa esteja a pensar nos pijamas do gato do que no gato propriamente dito. Mas daí a ter qualquer espécie de certeza num teste que fosse feito com exactamente essas mesmas técnicas na população geral é um grande passo. Estamos a falar em coisas curiosas, mas que têm muito a ver com probabilidades de ser uma coisa ou a outra. Mas eu tenho a impressão de que os militares e a polícia não querem jogar com probabilidades, querem ter certezas. O que seria aterrador é que não se percebesse aquilo que as técnicas permitem e se confundissem probabilidades com certezas. Aí, claro, teríamos um mundo perfeitamente kafkiano ou pior. É preciso que as pessoas percebam isso.
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