O que diriam Feuerbach, Nietzsche, Marx e Freud se assistissem a campanha eleitoral nacional que se desenrola este mês? Tal qual nos filmes de George Romero, cineasta americano famoso pela crítica social através dos filmes de zumbis, a religião aparece mais uma vez em cena como um morto-vivo a nos perseguir. Um debate político pós-Maquiavel deveria centrar-se em como construir uma nação melhor para todos os seus cidadãos e não se o aspirante a “príncipe” é católico, protestante ou budista. A cristianização da política na conjuntura atual talvez seja um sintoma das nossas mais inconscientes ambivalências.
A pergunta filosófica central do ateísmo contemporâneo não pode mais girar em torno da existência ou não de uma suposta figura divina onisciente, onipotente e onipresente. É verdade que um biólogo darwinista do quilate de Richard Dawkins tem se esforçado, com muita propriedade, nos seus últimos livros (especialmente em O Maior Espetáculo da Terra: as evidências da evolução) a demolir cientificamente a odisséia bíblica de Adão, Eva e a criação do mundo em sete dias. É importante expor sinteticamente o argumento de Dawkins: a teoria da evolução é científica por que pode ser refutada e as recentes pesquisas genéticas e de fósseis dão evidências empíricas muito fortes de que existe encadeamento evolutivo entre determinadas espécies. A idéia é de uma simplicidade desconcertante: a teoria da evolução poderá ser refutada quando um fóssil de Homo Sapiens datado de 1 milhão de anos for encontrado. Somente um misticismo arraigado explica a crença inabalável no conto de fadas do livro do Gênesis.
Voltando à filosofia, precisamos colocar sob suspeita (e investigar as causas) da persistência milenar dos múltiplos misticismos que nos apavoram. Ludwig Feuerbach, um filósofo alemão do século XIX (infelizmente conhecido somente por ter sido espinafrado por Karl Marx), através do seu livro A Essência do Cristianismo foi o pensador que mudou radicalmente os rumos do ateísmo: Feuerbach deixou de se preocupar com a questão sobre a existência ou não de deus para perguntar, acertadamente, sobre o significado antropológico da existência de deus, ou seja, Feuerbach estava preocupado em entender deus como um fato social e não metafísico. E Feuerbach vai mais além ao mostrar que as representações e segredos atribuídos ao ser sobrenatural não eram mais do que representações humanas naturais e que o homem transportava para um ser celestial o ideal de justiça, bondade e virtude que não conseguia realizar no plano concreto real. Para Feuerbach, a religião era uma alienação, pois o homem, ao colocar sua essência e sua humanidade num ser fora de si próprio, transforma-se em um ser que não se pertence.
Eis aí o pensamento precursor de Marx, Nietzsche e Freud. Alienação é a palavra-chave. Marx nos ensinou que, em determinadas condições sociais e históricas, a complexidade e o tipo das relações sociais estabelecidas levavam os homens a não mais se identificarem nos produtos de seu trabalho e a não mais se assumirem como protagonistas do processo de produção da vida em sociedade, acreditando que categorias abstratas como mercado, dinheiro e capital tinham existência autônoma suprahumana. Transformados em peças e engrenagens da maquinaria que nós mesmos construímos não assumimos o controle sobre o excedente econômico produzido e, por conseguinte, ficamos impossibilitamos de traçar os rumos do futuro de nossa civilização. Podemos, seguindo essa mesma linha, fazer uma leitura heterodoxa dos escritos do Dr. Freud. Em O Futuro de uma Ilusão, Freud afirma que a religião seria “a neurose obsessiva universal da humanidade” e, como toda neurose, ela é uma fogueira inextinguível que consome nossa energia libidinal excedente. Espremidos pelas exigências muitas vezes amorais do superego, pelas limitações impostas pelo mundo exterior e pela insaciabilidade dos nossos instintos, escapamos para o sintoma. Mas a fuga para a religião, como mostra Freud, não apaga o nosso “mal-estar existencial” e cobra um tributo elevado: o reinvestimento inconsciente das nossas energias existenciaisem um mundo etéreo e repressor nos aliena para as possibilidades reais de investimento das nossas energias em coisas do mundo terreno (o amor livre, a arte, a filosofia, a música e a ciência).
Em O Anticristo, Nietzsche afirmou que o mundo fictício tem raízes no ódio ao natural, sendo a expressão de um profundo mal-estar com o real. Esse mal-estar com real causado pela religião é o mal-estar com tudo que é humano, é uma rejeição de si mesmo. A recusa do mito da figura divina é um passo importante para o amadurecimento da humanidade e para a retomada das rédeas de nossa história. O exercício e a defesa do ateísmo contra a repressão existencial do discurso religioso (especialmente dos três grandes monoteísmos de nossa época) é a única saída para reconstruirmos nossa humanidade e para vivermos livremente sem desperdícios. Preocupados com o mundo das nuvens, perdemos a oportunidade de transformar e de viver intensamente no único mundo que existe.
Antônio de Pádua Melo Neto - Economista.
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