quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um poeta no templo

Não me lembro bem da época. Ainda era janeiro, creio eu, quando pela primeira vez fui ao Egito. Em Paris enfrentara fila no consulado para pegar o visto - caro, o tal carimbo! – se bem que não houve excesso de burocracia ao desembarcar no Cairo.

A cidade tentacular não consegue se afastar do deserto. Ele continua nas sarjetas, no piso do banheiro daquele hotel barulhento, nos assentos do trem que me leva a Luksor. Já sei: o costume, o ritual exige que se suba até Assuam de barco, como Agatha Christie em 1937. Prefiro sempre soluções em diagonal. O trem egípcio, lenta linha reta desde o delta de Alexandria até as Ilhas Elefantinas, oferece o raro espetáculo de duas paisagens opostas, conforme olharmos pela janela da direita ou da esquerda. De um lado, a encosta onde grudam uns cubos furados de aberturas que podem ser portas ou janelas, tudo cor de areia e coroado por uma floresta de antenas de televisão. Do outro, a Bíblia revisitada. O amplo e sereno rio onde deslizam pesadas velas triangulares. Ribeiras verdejantes, cada centímetro cultivado com carinho, lençóis pontuados de homens que, vestidos de longas galabiehs em tom de rosa, azul, branco, lilás, trabalham com ferramentas do tempo de Cleópatra. Bois atrelados a cavar a terra generosa, enquanto pássaros brancos voam a caminho do norte. Meu rosto refletido no vidro sobre fundo de deserto confirma que estou, realmente, naquele mítico país.
Chegaremos a Luksor em fim de dia, ainda a tempo para os últimos raios sobre as colunas douradas do templo que me espera a vinte metros do hotel. De noite ando até tarde pelas ruas desertas, ao longo do Nilo adormecido, pisando na sombra que a lua cheia me colocou na frente como guia fiel. Irei me estender na cama sem vontade, desejando que o tempo suspenda sua rota, nesta terra sem idade. 
De manhã, aproveito o sol primeiro e leve. O templo de Karnak abre seu ventre colossal, entidade antropófaga ao qual sorridentes rebanhos de belgas, japoneses e suecos serão sacrificados. Uma pequena máquina fotográfica perturba minhas andanças pela floresta de colunas. Deveria ter deixado no hotel. Prefiro andar com as mãos livres. O gigantesco labirinto me convence a perder qualquer coerência. Dez vezes volto às mesmas salas, dou voltas aos mesmos obeliscos, olhos perdidos na altura, surpreendido por raios que apunhalam a vista. Qual a força que convenceu homens de perfil ideal a levantar estas montanhas ciclópicas? Como inventaram os escultores a soberba escrita tão figurativa quanto hermética que cobre muralhas e estelas de granito? Recolho no chão coberto de pedregulho de calcário uma curiosa pedra parecendo o olho de Osíris. É um búzio fossilizado. Até hoje me vigia, banhando em tropical calor.
Continuo perambulando por salas menores e ainda por restaurar. Aqui também visitantes quiseram deixar a marca de sua passagem. Os grafites irritam qualquer que venha para respeitosamente encontrar a nascente de uma civilização perdida, jamais igualada.
Meu olhar vai decifrando origens e caligrafias, deslizando pelos muros. O tom mais escuro na parte baixa do monumento delimita aquilo que ficou enterrado por séculos. A parte superior tem o dourado da pedra original. Imagino os soldados de Napoleão andando nas cimeiras do templo, sem imaginar quanta beleza pisavam e ignoravam. De repente, bem nas alturas, meus olhos batem em seis grandes letras cuja caligrafia data, sem erro possível, do fim do século XIX. “R I M B A U D”. Não posso acreditar. O autor de Une saison en enfer esteve aqui e ninguém, até hoje, notou o grafite? Agora sim, esta máquina vai me servir. Registro sem tardar minha preciosa descoberta. Tento recuperar vagas noções de geografia para comprovar que o poeta teria atravessado Egito, Sudão e Etiópia antes de se empregar em Aden.
Voltarei a Salvador. Sem tardar, a rotina me afastará da lembrança das faraônicas areias, até resolver levar minha mãe a longa e estreita faixa à beira da África plantada. Novamente o Khan Khalili, as pirâmides à luz púrpura do crepúsculo, novamente o encanto do Antigo Testamento, mergulhando nos milênios, bebendo ás águas da História. Chegamos a Luksor. Nada disse a minha mãe durante a viagem, para reservar o efeito de surpresa. Já estamos em maio e o calor tornou-se pesado. Entramos no templo de Karnak. Como quem não sabe de nada, dirijo-me pelas salas até a parte que deve ter preservado a prestigiosa assinatura. Procuro, procuro... e nada acho. Teria sido vítima de alguma miragem literária? Quanto mais ando, mais me convenço de que estou me afastando. Terei que contar sobre o poeta à minha genitora que, intrigada, também começaria um vão trabalho de detetive.
Voltaremos ao hotel, voltaremos ao Cairo, voltaremos, ela a Madri, eu a Salvador sem mais ter encontrado as seis letras que completariam o edifício incerto da bizarra trajetória do poeta. De vez em quando abro a caixa onde dorme mais de um século de fotografias familiares para verificar que, sim tenho ainda uma transparência como prova de minha aventura. Não é o caso do verso “Les hallucinations sont innombrables”...

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