Hoje esquecido, Edmundo de Amicis, autor de “Cuore” – e um dos primeiros socialistas italianos – foi um muito festejado escritor de romances no século XIX. Após participar da caravana que levou o embaixador da Itália até Fez para encontrar o sultão, publicou o livro “Marrocos” em 1875. Livro fascinante apesar de várias observações hoje tidas com politicamente incorretas. Copiei este extrato, respeitando a ortografia e pontuações originais, pensando que poderia interessar algum estudioso.
“Encontro tantos pretos nas ruas de Fez que, ás vezes, penso que estou numa cidade do Sudão, sinto vagamente entre mim e a Europa a imensidade do deserto do Saara. Do Sudão efetivamente vem a maior parte, pouco menos de três mil por ano, muitos dos quais se diz que morrem em pouco tempo de nostalgia. Pela maior parte, vem com oito ou dez anos de idade. Os mercadores, antes de os exporem a venda, engordam-nos com bolos de cuscussú, procuram curá-los da nostalgia com a música e ensinam-lhes algumas palavras de árabe, o que lhes aumenta o valor, que é habitualmente de trinta liras por um rapazinho, sessenta por uma pequenina, cerca de quatrocentas por uma menina de dezessete ou dezoito anos, bonita, que saiba falar, e que não tenha parido ainda; e cinqüenta ou sessenta por um velho. O imperador retém cinco por cento da matéria importada, e tem o direito da primeira escolha. Os outros são vendidos nos mercados de Fez, de Mogador e de Marrocos*, e separadamente em leilão, em todas as outras cidades onde os compradores, por tradição, têm o pudibundo cuidado de não quererem ver publicamente o que as roupas escondem. Abraçam todos, sem dificuldades, a religião mahometana, conservando porém muitas das suas estranhíssimas superstições, e as festas extravagantes que chegam a durar três dias e três noites consecutivas, acompanhados por uma música diabólica, não interrompidos senão para se engulir com bestial avidez toda espécie de porcarias. Servem pela maior parte nas casas, são tratados com brandura, chegam em grande parte a libertos em recompensa de seus serviços, têm o caminho aberto até para os mais altos cargos do Estado, e revelam-se aqui como em toda parte, ora febrilmente ativos, ora entorpecidamente preguiçosos, luxuriosos como macacos, astutos como raposas, ferozes como tigres, mas contentes com seu estado, e pela maior parte gratos aos patrões, o que parece não acontecer onde a escravidão é mais dura como em Cuba, e onde é a liberdade que desfrutam é excessiva como na Europa. Os mouros** e os árabes afastam-se deles; e é raríssimo que um preto case com uma mulher que não seja de sua cor; mas os homens e em especial os mouros não só as procuram avidamente como concubinas, mas desposam-nas com a mesma facilidade com que desposam as brancas, dali provem o grandíssimo número de mulatados de todas os matizes que há em Marrocos. Estranhas vicissitudes! O pobre preto de dez anos, vendido nos confins do Saara por um saco de açúcar ou por uma peça de fazenda, pode, e já se deu o caso, discutir trinta anos depois – sendo ministro em Marrocos* - um tratado de comércio como embaixador na Inglaterra; e muito mais provavelmente a criança preta nascida num covil imundo e trocada á sombra de um Oasis por um ôdre de água ardente, achar-se, apenas chega a adulta, coberta de jóias, e rescendente de perfumes, nos braços do Sultão.”
“Marrocos” neste caso significa a cidade de Marrakesh, então capital do império.
“Mouros” define os descendentes dos exilados de Espanha e Portugal, expulsos por Isabel a Católica, após uma ocupação de oito séculos.
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