domingo, 3 de abril de 2016

PELA LEGALIDADE / COISA DE CINEMA

WAGNER MOURA

Pela legalidade

Ser legalista não é o mesmo que ser governista, ser governista não é o mesmo que ser corrupto. É intelectualmente desonesto dizer que os governistas ou os simplesmente contrários ao impeachment são a favor da corrupção.
Embora me espante o ódio cego por um governo que tirou milhões de brasileiros da miséria e deu oportunidades nunca antes vistas para os pobres do país, não nego, em nome dessas conquistas, as evidências de que o PT montou um projeto de poder amparado por um esquema de corrupção. Isso precisa ser investigado de maneira democrática e imparcial.
Tenho feito inúmeras críticas públicas ao governo nos últimos 5 anos. O Brasil vive uma recessão que ameaça todas as conquistas recentes. A economia parou e não há mais dinheiro para bancar, entre outras coisas, as políticas sociais que mudaram a cara do país. Ninguém é mais responsável por esse cenário do que o próprio governo.
O esfacelamento das ideias progressistas, que tradicionalmente gravitam ao redor de um partido de esquerda, é também reflexo da decadência moral do PT, assim como a popularidade crescente de políticos fascistas como Jair Bolsonaro.
É possível que a esquerda pague por isso nas urnas das próximas eleições. Caso aconteça, irei lamentar, mas será democrático. O que está em andamento no Brasil hoje, no entanto, é uma tentativa revanchista de antecipar 2018 e derrubar na marra, via Judiciário politizado, um governo eleito por 54 milhões de votos. Um golpe clássico.
O país vive um Estado policialesco movido por ódio político. Sergio Moro é um juiz que age como promotor. As investigações evidenciam atropelos aos direitos consagrados da privacidade e da presunção de inocência. São prisões midiáticas, condenações prévias, linchamentos públicos, interceptações telefônicas questionáveis e vazamentos de informações seletivas para uma imprensa
controlada por cinco famílias que nunca toleraram a ascensão de Lula.
Você que, como eu, gostaria que a corrupção fosse investigada e políticos corruptos fossem para a cadeia não pode se render a esse vale-tudo típico dos Estados totalitários. Isso é combater um erro com outro.
Em nome da moralidade, barbaridades foram cometidas por governos de direita e de esquerda. A luta contra a corrupção foi também o mote usado pelos que apoiaram o golpe em 1964.
Arrepio-me sempre que escuto alguém dizer que precisamos "limpar" o Brasil. A ideia estúpida de que, "limpando" o país de um partido político, a corrupção acabará remete-me a outras faxinas horrendas que aconteceram ao longo da história do mundo. Em comum, o fato de todos os higienizadores se considerarem acima da lei por fazerem parte de uma "nobre cruzada pela moralidade".
Você que, por ser contra a corrupção, quer um país governado por Michel Temer deve saber que o processo de impeachment foi aceito por conta das chamadas pedaladas fiscais, e não pelo escândalo da Petrobras. Um impeachment sem crime de responsabilidade provado contra a presidente é inconstitucional.
O nome de Dilma Rousseff não consta na lista, agora sigilosa, da Odebrecht, ao contrário dos de muitos que querem seu afastamento. Um pedido de impeachment aceito por um político como Eduardo Cunha, que o fez não por dever de consciência, mas por puro revide político, é teatro do absurdo.
O fato de o ministro do STF Gilmar Mendes promover em Lisboa um seminário com lideranças oposicionistas, como os senadores Aécio Neves e José Serra, é, no mínimo, estranho. A foto do juiz Moro com o tucano João Doria em evento empresarial é, no mínimo, inapropriada.
E se você também achar que há algo de tendencioso no reino das investigações, não significa que você necessariamente seja governista, muito menos apoiador de corruptos. Embora a TV não mostre, há muitos fazendo as mesmas perguntas que você.
WAGNER MOURA, 39, é ator. Protagonizou os filmes "Tropa de Elite" (2007) e "Tropa de Elite 2" (2010). Foi indicado ao prêmio Globo de Ouro neste ano pela série "Narcos" (Netflix) 



ANDRÉ BARCINSKI

Coisa de cinema

Publicado nesta seção, o artigo "Pela legalidade", em que o ator Wagner Moura critica o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, é uma aula de cinema. A exemplo dos melhores cineastas e roteiristas, Moura criou uma narrativa fantástica que serve totalmente ao gosto de seu público-alvo. Um sucesso garantido.
O autor e roteirista Elmore Leonard recomendava a iniciantes: "Omita partes da história que seus leitores tendem a pular". Moura seguiu o conselho à risca e suprimiu vários fatos que poderiam atrapalhar o roteiro e desagradar ao público. O petrolão é um deles. A prisão de diversos políticos e empreiteiros ligados ao governo é outro.
Todo "thriller" político precisa de um mocinho, um personagem puro e destemido, que enfrente o mal de peito aberto. E aqui Moura criou uma heroína clássica, Dilma Rousseff, injustamente acusada de pedaladas fiscais (e de mais nada, segundo o roteiro). Prova da inocência de Dilma, ainda segundo o diretor, é que "seu nome não consta da lista, agora sigilosa, da Odebrecht". Ufa!
Mas essa história não teria graça sem um grande vilão, e Moura escolheu o seu: o juiz Sergio Moro, descrito como uma espécie de Darth Vader, um tirano que defende o lado negro da Força.
O público de cinema adora odiar um bom bandido, e ninguém quer saber se ele possui qualidades redentoras, como participar de uma operação que prendeu dezenas de réus confessos, conseguiu 93 condenações criminais e recuperou quase R$ 3 bilhões surrupiados. Para que deixar fatos estragarem uma boa história, não é mesmo, diretor?
É impossível, no entanto, discordar do roteiro de Moura quando diz que "um pedido de impeachment aceito por um político como Eduardo Cunha, que o fez não por dever de consciência, mas por puro revide político, é teatro do absurdo".
Ele tem toda razão. Ainda bem que o diretor teve o bom senso de não lotar sua história de outras cenas surrealistas, como sítios e apartamentos de luxo habitados por fantasmas e uma presidente que convida um investigado pela Justiça para ocupar um cargo no alto escalão no governo. Afinal, isso aqui não é filme de Luis Buñuel, certo?
O roteiro de Moura é um "thriller" político calcado no realismo, mas se permite voos criativos que o aproximam de outros gêneros.
Quando o roteiro diz que "a luta contra a corrupção foi também o mote usado pelos que apoiaram o golpe em 1964", o diretor compara pessoas que não aceitam a corrupção atual com as que apoiaram a ditadura, o que tornaria o filme uma sátira absurdista nos moldes de "Diabo a Quatro" (1933), clássico do escracho em que Groucho Marx vira o presidente de Freedonia.
A narrativa de Moura remete também ao cinema anticomunista e paranoico feito nos EUA nos anos 50. Depois de admitir que "o PT montou um projeto de poder amparado por um esquema de corrupção", define o impeachment não como um instrumento previsto na Constituição, mas como "uma tentativa [...] de derrubar na marra, via Judiciário politizado, um governo eleito por 54 milhões de votos. Um golpe clássico".
Se o roteiro de Wagner Moura tem uma falha grave, é ignorar um personagem que poderia adicionar drama e tensão à história: Lula. O ex-presidente virou uma espécie de Norma Desmond, a atriz que Gloria Swanson interpretou em "Crepúsculo dos Deuses" (1950), de Billy Wilder: antes famoso e influente, hoje não diz coisa com coisa e vive da caridade dos amigos.

ANDRÉ BARCINSKI, 48, é crítico da Folha e autor do livro "Pavões Misteriosos" (Três Estrelas) 

Um comentário:

  1. Parabéns Dimitri Ganzelevith pela postagem dos textos... Dessa forma cada ser humano poderá tirar as suas próprias conclusões dos fatos narrados, independentemente de sua opção política.

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