domingo, 10 de abril de 2016

BEIRU, IORUBÁ..

BEIRU: A HISTÓRIA DE UM AFRICANO IORUBÁ QUE CONQUISTOU TERRAS EM SALVADOR-BA, NO SÉCULO XIX, E SE TORNOU UM ANCESTRAL A NOMEAR TODO UM BAIRRO

Por Davi Nunes
beiru imagem
Ilustração: DanielSantana
Traçar a história de um ancestral não é fácil, há de se ter uma espiritualidade tambórica, o onírico que conflui os tempos no presente; o imagético para amalgamar espelhos despedaçados e a tessitura orgânica do boca-a-boca atemporal da oralidade para costurar enredos e fatos. A tentativa de pôr os pingos nos is da nossa história talvez seja a grande virada epistemológica. Assim, vamos tentar nesse breve ensaio esboçar a trajetória de Beiru, homem africano, e da territorialidade, ou bairro, que essa personagem histórica fundou e nomeia até hoje, no Cabula, centro geográfico da Cidade do Salvador-BA.
Gbeiru, ou Beiru foi um homem, segundo a tradição oral do bairro (construída e preservada nos diversos terreiros de candomblé), que veio escravizado da Nigéria, especificamente do poderoso Estado de Oyó para Salvador, na primeira metade do século XIX. Ao chegar nestas terras, solo movediço que o engoliu – a escravidão – se tornou cativo dos Hélios Silva Garcia, escravocratas que tinham uma fazenda chamada Campo Seco, onde hoje se situa o bairro Beiru/Tancredo Neves, além de serem um seguimento da família Garcia D´Avila, que fora poderosos latifundiários no Brasil, no século XVI e XVII.
Beiru, segundo relatos dos moradores do bairro, fora estratégico com a escravização no Brasil, entendeu a engrenagem do desassossego para sobreviver, conseguiu parte das terras e agregou os escravizados que fugiram do cativeiro, constituiu liberdades dentro de uma estrutura de opressão absurda, como se pode perceber no documentário “Beiru, o Patriarca” produzido pelo Cine Arts, link abaixo:
Assim, além do imaginário coletivo, de uma memória ancestral de negros e negras da região, pode-se ver no livro, “Alufa Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no atlântico negro” organizado por João Jose Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J.M. de Carvalho, especificamente no artigo “A África de Rufino” escrito por Reis (2010) no qual ele fala de um prospero comerciante ioruba, Solagbeiru, que convocou após a revolta dos escravos haussás de Oyó, em 1817, devida a convivência tensa entre a minoria malê  e a maioria devota dos orixás em Oyó, a saírem do poderoso estado africano em grande número e fugirem da perseguição do Alafin, o rei.
Tal dissociação entre Solagbeiru e o Alafin, em nível de pressupor, ou preencher lacunas históricas com ficção, poderia – visto que ele era um iorubá, mas que também se aproximava ao islamismo – ter descambado na sua prisão e envio como escravizado para Salvador.
Os conhecimentos de etnolinguística nós faz observar muita história por trás dos nomes, das palavras, unido ainda com uma imaginação de escritor, não torna muito impossível associar Solagbeiru a Gbeiru como sendo a mesma pessoa, como sendo Beiru, o homem que fundou uma sociabilização africana em Salvador. Óbvio que trago isso como uma associação imaginativa, maneiras que temos de costurar os liames das nossas histórias, estilhaçadas por séculos de opressão e racismo estrutural. É uma espécie de sopro de orixá ao ouvido. Pensar ou nós imaginar fora das esquemáticas, dos sofismas organizados pela branquitude, já é poder – é um exercício que nos conectar com os ancestrais e nos deixa próximo da verdade.
Nesse sentido, no imaginário coletivo, melhor, no campo semântico de memória ancestral e resistência, Beiru é um arquétipo, o homem que compôs modelos civilizatórios africanos na região, uma referência de luta às opressões vivenciadas até o momento pelo povo negro em Salvador.
II
O bairro Beiru está localizado no miolo do Cabula, no centro, é um dos locais que compõe o que foi a região do Antigo Quilombo do Cabula, destruído em 1807 por ordem do conde de ponte. Ele reúne em si os aspectos do universo civilizatório africano na constituição da territorialidade, da realidade vivencial dos descendentes de africanos nessa região. Tudo isso ocorreu devido à sua especificidade histórica, pois remonta a um ancestral fundador da territorialidade, como já dito, Beiru. Além da preservação de muito dos elementos da religiosidade afro-brasileira, oriundas dos rituais realizados nas matas densas do antigo quilombo, no século XIX.
Após a morte de Beiru, já em fins do século XIX, os Hélios Silva Garcia retomaram as terras que fora dele, a sua fazenda, e, em 1910, elas foram compradas pelo Tata Miguel Arcanjo, um babalorixá que fundou em 1912 o primeiro terreiro de origem banto da região, o Terreiro de Massanguá, de raíz Amburaxó. A certidão da compra da venda pode ser vista no livro Beiru, lançado pela Associação Comunitária Carnavalesca Mundo Negro, 2007. Posteriormente os filhos de santo do Tata Miguel Arcanjo fundaram na região outros terreiros como o Terreiro Ilê Axé Tomim Bokun de Manoel Rufino e o Nsumbu Tambula Dicolia Meian Dandalunda ou Terreiro São Roque, criado em 1943.
Os terreiros de candomblé de origem banto foram um dos elementos identitário mais essenciais para a criação, manutenção e desenvolvimento da memória da comunidade do bairro do Beiru. O Terreiro Isumbu Meian, (Vila São Roque), localizado no chamado Largo do Anjo Mal, foi um importante lócus religioso que conseguiu preservar e difundir a tradição ritualista da nação Amburaxó-Angola na comunidade, assim como a história do primeiro proprietário da localidade, Beiru, passada de geração a geração através da oralidade.
III
Outro fator que foi determinante na trajetória do bairro Beiru, que tentou desreferenciar os moradores da sua história ancestral, foi a mudança do nome do local, no dia 2 de julho de 1985, para Tancredo Neves. Existe até uma anedota que os mais velhos contam e ilustra bem como ocorreu o processo, ou a tentativa de apagamento da nossa identidade, pois vejam bem: no dia que mudaram o nome do bairro nas placas dos ônibus, a população foi trabalhar e na volta pra casa, no ponto, ficaram esperando o ônibus Beiru, mas o Beiru não passou mais.
foto ônibus Beiru
Na verdade, o que ocorreu foi que após a morte de Tancredo Neves, o presidente da associação do bairro na época, chamado Dionísio Juvenal, resolveu organizar um plebiscito para mudar o nome da localidade, fez intensa campanha contra o nome Beiru, se associou com a mídia oficial, pois o jornal Tribuna da Bahia publicou na época uma reportagem com o seguinte título: Beiru quer mudar o nome. Para acabar com rimas e trocadilho.Assim, com argumentos pífios de rima, ele conseguiu fazer grande parte da população votar na mudança do nome do bairro e depois se elegeu até vereador. Assim, durante um bom tempo Beiru se tornou Tancredo Neves, mas que na fonética popular sempre rebelde aos padrões da língua normativa se tornou “Trancredo Neves”.
IV
No Beiru, no ano de 1996, ocorreu uma operação de extermínio dos jovens negros, uma das mais atrozes já vista na Bahia, chamada de Operação Beiru: nessa época foram mortos, por ação policial, mais de 50 jovens no bairro, durante um mês exterminaram uma geração, devastaram e traumatizaram muitas famílias. Construíram um amontoado de cadáveres de jovens e um rio de lágrimas vertido pelas mães na região.
Outro fator que dá conta das opressões e impetrações violentas do estado baiano se faz ver na ocupação das instituições do estado no bairro, pois onde era a Fazenda Beiru, se criou a 11° Delegacia da polícia, onde era um dos maiores terreiros, Ilê Axé Tomin Bokun, santuário de expressão das religiões e culturas bantos no Brasil, se formou a Igreja Universal do Reino de Deus.  Por todos os lados as violências, por todos os lados nos obrigam a ser o que não somos; espelhos degringolados, não. Espelhos estilhaçados.
V
No ano de 2002, surgiu o Jornal do Beiru, o jornal tinha como objetivo provocar na juventude do bairro uma discussão positiva sobre as suas origens.
JORNAL DO BEIRU
Muitos jovens se envolveram, começaram a pesquisar e a escrever sobre a história do local, o que de certa forma deu início para a retomada do nome Beiru, pois houve uma maior movimentação na comunidade com abaixo assinado, reivindicando a volta da nomeação original, debates e pressão à prefeitura de Salvador. Na verdade, na prefeitura o nome do bairro é Beiru, o que houve, em 85, foi tirar nas placas dos ônibus Beiru e colocar Tancredo Neves. Hoje depois de muita luta, nas placas das conduções aparecem os dois nomes: Beiru/Tancredo Neves. Assim, O Jornal foi de extrema importância para que isso ocorresse, além de instrumentalizar jovens com a sua própria história, muitos deles hoje são acadêmicos, artistas, intelectuais ou profissionais com o ensino superou. Ou simplesmente homens e mulheres negras que sabem o tino da sua história, o liame ancestral, para organizarem com maior liberdade as suas vidas.

VI
A modulação atual do bairro Beiru é muito parecida com os outros locais “periféricos” de Salvador, alta densidade demográfica, um forte comércio de bens e serviços, avenidas densas de transeuntes, vielas edificadas por casas. Uma juventude brilhosa e criativa, que querem sorver a vida com toda a sua força e beleza.  Que querem, na multidimensionalidade das suas realidades, tecerem ritmos, linguagens, imagens, sonhos, que percebem o aço quente do olhar dos gambes, mas se curvam e quando algum amigo é atingido pela voracidade sanguínea do estado, sentem a coloração do sangue no olho, sentem que é o seu sangue também. E isso é louco. Mas Beiru está no imaginário de todos, mesmo como um sonho, é o arquétipo ancestral, é o fundador, é o que nós faz pisar no chão do bairro e nos sentir plenos, refaz a nossa humanidade para estar pronto para restauração da nossa realeza, para estar pronto para a grande virada.

Davi Nunes, graduado em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia, é poeta,  contista e escritor de literatura infantil.

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