Nada
como beber à fonte
Mas, afinal, entre
centenas de países, por que o Benin, que nem nação seria sem determinação
francesa (em outros casos, portuguesa, italiana, belga, espanhola, inglesa,
alemã, holandesa e esqueça os outros)? Porque, desde há muito tempo, eu estava
ansioso por conhecer a origem de significativa parte da cultura baiana. Assim
que debrucei-me até a nascente, juntando as duas mãos como numa prece, bebendo
um pouco desta água rica de lembranças, tristeza e fé.
A África é uma imensa
colcha de retalhos tribais, cada uma com sua língua e seus costumes. As
fronteiras impostas ao antigo Dahomey pouco têm a ver com a realidade deles lá.
Por que será que os “ocidentais” têm esta mania de obrigar o resto do mundo a
se comportar e se organizar como eles? A História não é outra coisa senão uma
sucessão de Bushes, seja George, Alexandre, Louis, Pedro, Carlos ou Adolfo.
Pois então, o atual
Benin agrega, mal ou bem, um punhado de etnias, várias delas transbordando
sobre a Nigéria, o Togo e o Niger. Cotonu, um milhão de sobreviventes, um
punhado de ricaços, é torre de Babel. Fons, iorubas, ketus, popós, tentam e,
geralmente, conseguem dialogar num esperanto improvisado, salpicado cá e lá de
palavras francesas.
Os laços entre
dominados e dominadores sempre foram como presidiários e policiais. Ódio e
dependência, mas sedução e atração também, pois ninguém é de pedra.
Quando um taxi nos
levou até o país ketu, o motorista François, de etnia fon, como seu nome não indica,
se sentiu tão deslocado quanto eu. E olhe que não havia mais que 130 quilômetros
de distância desde Cotonu.
EDIFÍCIO DO SÉCULO XIX, FORTEMENTE INSPIRADO NO ECLETISMO BAIANO
Sair da cidade é como
tentar escapar de areias movediças. Os subúrbios se estendem indefinidamente,
pontuados de construções delirantes, tal aquele estúdio pertencendo a nossa
amiga Angélique Kidjo, pop star do mundo eletrônico. Aqui vai um recado:
Angélique, telefonei em vão ao seu irmão Oscar. Ele estava viajando e quando
voltou, não retornou a ligação. Mas quem sou eu, hein? Beijo, Angélique.
Finalmente estamos na
estrada, a caminho de Ouidah. Li “O vice-rei de Ouidah”, gostei e esqueci de
quase tudo. Só ficou uma lembrança de poesia entrelaçada de sordidez.
No século XIX, o
caboclo brasileiro Francisco (Cha-Cha na intimidade) de Souza era amigo do rei
de Ouidah. Enriqueceram ambos, na venda de escravos. No meio deles, alguns
talvez primos ou sobrinhos. Deu-se tão bem o carioca, que ainda hoje existe a
dinastia dos Cha-Cha. A casa dos descendentes em Ouidah é um palácio modernoso,
monte de sacadas enfeitadas de grinaldas de balaustres. Balaustrada é sinal de
prosperidade. Assumo meu lado beninense, já que minha casa também as tem, se
bem que em quantidade infinitamente mais modesta (meus antepassados não
negociavam no mesmo ramo).
Está sentado? A praça onde os escravos eram leiloados
chama-se “Place Cha-Cha” e serve de entrada monumental para o palácio acima
mencionado. Pode?!
Nosso jovem guia Noé de
Oliveira, conta tudo com a mais absoluta indiferença. Escravidão é o lote dos
perdedores. Quem lhe mandou ser besta? Agora
vai para a costa embarcar nos navios! Antes de chegar ao mar, os homens deverão
dar nove voltas à árvore do esquecimento. As mulheres sete somente, por causa
das costelas a menos.
E alguém conseguirá
jamais esquecer, por mais voltas que tenha dado a qualquer árvore que seja?
Aliás, ela foi cortada e substituída por um monumento-escultura de gosto
duvidoso e manutenção precária. Mas do tronco cortado, ainda visível,
pareceu-me ver novos galhos brotarem. Símbolo: não há esquecimento possível...
As cidades do Benin têm
em comum uma característica. Não existe centro. Em outras culturas, a igreja –
ou a mesquita, a prefeitura, o palácio – é o umbigo da teia urbana. Aqui não é
assim. Simplesmente, embora haja periferia, não há centro. Ou melhor: o centro
é exatamente onde você está. Satisfeito?
Chegamos a Ouidah.
Ponto de atração é o Templo dos Pítons. Começa outra realidade. O
relacionamento entre a religião e o dinheiro. O “bakshish” ou propina desliza
para a corrupção, que é, no Benin, como em quase todo o resto da África, um
fato. Não adianta invocar razões sociais, econômicas, culturais, etc. A
corrupção deita e rola à sombra de qualquer tipo de autoridade, seja militar,
sindical, política ou religiosa. E a qualquer nível da sociedade.
Mas não estou
aqui para falar mal do país, muito pelo contrário...
O Templo dos Pítons é
ponto de passagem obrigatório dos adeptos do vodu e dos turistas. Um imponente
negão, de branco vestido, cobra entrada aos visitantes. Uma boa grana, para os
parâmetros locais. Tíquete? Não existe. Guia e motorista também pagam (ou seja:
eu pago), embora possam entrar de graça se não acompanhados de gringos. Forma
de redistribuir as riquezas. A minha pelo menos. Rodeado de construções de
adobe e telhado de palha, o templo, um pouco maior que o resto, tem portão de
madeira entalhada. Dentro, uma dúzia ou mais de cobras dormem ou se movimentam
sem pressa. Suponho que nada, senão a liberdade, aqui lhes falte. Água, dada
ritualmente por quarenta e uma virgens, ratinhos e outras iguarias. O guardião
pega um réptil e nos sugere colocá-lo à volta do pescoço. O que faço sem
cerimônia, pois tenho uma velha simpatia por estes bichos tão maltratados pelos
preconceitos populares. Gosto de sua limpeza, da elegância da cabeça, a firmeza
do corpo frio. Na verdade, se trata de pobres lagartos que, ao longo de alguns
milhões de anos, foram perdendo as patas. Raras são as serpentes perigosas. Os
humanos com seus dois braços, estes sim, são quase sempre perigosos. Não
esqueça de tirar umas fotos, nem que seja para justificar o suplemento cobrado.
O guardião figura em todas elas, auto-estima lá em cima.
Não deduza da
leviandade deste relato alguma ironia ou condescendência euro-centrista. Como
explicar? Talvez o olhar de um cético, porém sensível e respeitoso. As religiões
tradicionais, todas elas, mesmo com excessos e proibições, são fonte
inesgotável de cultura. Como ficar indiferente ao vodu, se ainda na Bahia ele é
o óleo de baleia deste magnífico muro de resistência?
A caminho do mar,
passamos por um “Complexe Scolaire de Brésil”. Chegando à praia, almoçaremos no
“Paradis du Brésil”. Porto-Novo e Ouidah ainda ostentam edifícios construídos
por ex-escravos retornados ao país. No fim do século XIX, eles seriam “les
brésiliens”, uma nova elite apegada aos costumes adquiridos do outro lado do
oceano.
A CATEDRAL DE UIDAH
Carnaval, procissões – sim,
porque voltaram católicos – com sobrenomes portugueses, Senhor do Bonfim,
comida, milho, mandioca e tomate. Prova é a igreja pseudo-gótica construída bem
em frente ao Templo dos Pítons. Não, você não se sentiria deslocado por aquelas
bandas. Tudo tem ar de Recôncavo. Coqueiros, mangueiras, bananeiras e mormaço
incluído.
E, como do lado de cá,
a noite cai cedo. Melhor apressar a volta porque, se de dia é difícil correr
pela estrada, de noite a empreitada se veste de pensamentos suicidas. (Segue).
Dimitri
Ganzelevitch
Salvador,
13 de julho de 2003
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