ORDEP SERRA
Começo por uma
explicação. A Sheerezade a que faz referência o título desta crônica não é a
maravilhosa personagem das Mil e Uma Noites, que há séculos encanta leitores do
mundo inteiro. É bem o seu oposto. A dama dos contos árabes, um personagem dos
mais bonitos da literatura mundial, com sua inteligência triunfa da sanha de um
tirano, dobra-o graças a seu talento, tecendo magníficas histórias que a mantêm
viva. Ela pode ser considerada uma imagem da sabedoria, uma princesa da imaginação.
Infelizmente seu belo nome foi dado a uma pessoa que de modo nenhum o merece.
Eu me refiro à truculenta jornalista da SBT que espantou o Brasil pela
brutalidade de um comentário estúpido, seu despudorado aplauso a um ato de
violência bestial. Vocês com certeza se recordam da história. No Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, um
adolescente negro, suspeito de ter realizado furtos, foi espancado por um bando
de brutamontes que se intitulam “justiceiros” e, depois de mutilado com uma
facada na orelha, preso nu a um poste pelo pescoço, por meio de uma trava de bicicleta. A jornalista
Sheerezade achou tudo muito certo e o declarou no ar em seu programa de 0/4/02/
2014, exprimindo-se de forma zombeteira: “Aos defensores dos direitos humanos
que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste eu lanço uma campanha: faça um
favor ao Brasil, adote um bandido”. Acrescentou mais uma pérola: “num país que
sofre de violência endêmica a atitude dos vingadores é até compreensível.”
Sim, “parece compreensível” para quem não se dá ao
trabalho de pensar e pouco se importa com moral, vergonha, dignidade humana.
Nem mesmo com a lógica. Dá-se que “vingadores”, em toda a parte, apenas incrementam a violência. Os
vergonhosos presídios do Brasil, onde os cativos são tratados com sistemática
brutalidade, onde a tortura continua prosperando e em vez de ressocialização
acontece desumanização, são instituições que ensinam ódio e sevícia, cultivam o
desrespeito pela condição humana, tornam os seus internos cada vez mais cruéis e
revoltados, prontos a ultrapassar todos os limites morais e legais, de modo a
fazer-se seus próprios vingadores, ansiosos por vítimas - quaisquer vítimas -
em que descontem a degradação, a humilhação e os maltratos sofridos no cárcere.
As organizações criminosas que hoje ameaçam toda a sociedade nasceram nesses infames presídios, reagindo
ao tratamento indigno dispensado aos cativos. Fazem das cadeias seu quartel
general.
As milícias que pretendem “fazer justiça” em lugar do
Estado se tornam rapidamente bandos criminosos, especializados no achaque e na
extorsão, mas propensos a toda espécie de ilícito: convertem-se logo em
verdadeiras quadrilhas.
Policiais carrascos criam carrascos. Vingadores atraem
vingança, em proporções cada vez mais ferozes. E assim por diante.
Os espancadores que Sheerezade aplaudiu são simplesmente
bandidos. E ela os adotou como seus protegidos, já que os “justifica”. Este
tipo de adoção os defensores dos direitos humanos repudiam, pois para quem
preza a dignidade humana é exatamente o contrário que se deve fazer: educar,
ressocializar, punir de forma corretiva, prevenindo a continuação de atos
danosos ao corpo social e fazendo o possível para evitar-lhes a reiteração. A
jornalista, por exemplo, carece de uma punição dessa ordem, para que passe a
respeitar o código de ética de sua categoria, o Estatuto da Infância e do
Adolescente, as leis brasileiras, a decência.
Todos viram na internet a foto do adolescente negro
desnudo e ligado a um poste. Ela provoca de imediato uma lembrança repugnante:
os espancadores do Flamengo reinventaram o pelourinho. Esse perverso
instrumento de tortura tinha por base a imobilização do cativo que aí era
torturado e humilhado, exposto de modo infamante.
É tempo de identificar o outro personagem referido no
título deste artigo. Eu me refiro ao
atual Secretário da Fazenda do Município de Salvador, o Sr. Mauro
Ricardo Costa, hoje empenhado em campanha pelo reajuste do IPTU desta urbe em
bases consideradas extorsivas pela OAB, por empresários e populares, pela
sociedade civil organizada e pelo povo em geral. Ao ser entrevistado pela
Itapoan FM, no dia 20 de fevereiro último, o inefável secretário lamentou: “Antigamente
se botava as pessoas no pelourinho pra poder pagar as suas dívidas.
Infelizmente hoje não é mais assim. Hoje é a Justiça. É a Justiça quem define e
o prazo é estabelecido pela Justiça”.
Não há como negar: quem diz uma
coisa dessas não tem condições morais de exercer nenhum cargo público em um
estado democrático. O torvo secretário simplesmente revelou sua vocação de
carrasco. Esqueceu a decência, o respeito, o decoro. É devoto da tortura.
Gostaria de tratar os munícipes ao estilo dos déspotas dos piores tempos. Tem
saudades da escravidão e dos métodos brutais de uma autoridade que se impunha
pela violência. Acha que o pelourinho é uma boa solução para lidar com os
devedores: deixa claro que gostaria de dispor desse recurso na sua
administração das finanças públicas de Salvador. Lamenta que já não se use o
abominável instrumento de sevícia e degradação: “Infelizmente não é mais
assim”. Lastima a substituição do sinistro poste por outra coisa, que, como
deixa claro, não é de seu agrado: a
Justiça, de que assim escarnece, como
assinalou com acerto a nota da Ordem dos Advogados do Brail - Seção da Bahia
sobre o triste episódio.
O secretário desculpou-se, é verdade. Mas suas
desculpas têm um sabor muito forte de hipocrisia e insultam a inteligência do
público. Ele diz que sugeriu a punição dos sonegadores de impostos, “prática capitulada como
crime pela legislação brasileira, mas que alguns setores insistem em tratar
como algo natural ou crime menor”. De fato, ele foi muito mais longe. Especificou o método punitivo de sua
preferência, um meio cujo desuso lastima: o pelourinho. Tornou clara, também,
sua insatifação com aquilo que o substitui: a Justiça, pura e simplemente.
Tanto valoriza o primeiro quanto deprecia a segunda. Ele certamente sabe que
Salvador é uma cidade de maioria negra e que aqui o pelourinho foi usado para o
castigo desumano de negros escravizados. Agora diz que não quis ofender a
comunidade negra. Insultou, mas não quis ofender. Muito interessante.
Alega o secretário que foi mal interpretado. Todavia, não existe nenhuma
possibilidade de interpretar o que ele disse em um sentido diferente do que
trasparece logo à primeira vista. Não há artifício de exegese, não há recurso
de hermenêutica que desencave outra mensagem no seu discurso. Impõe-se de
maneira rigorosa a interpretação que todos lhe deram.
Em termos claros e explícitos, o Sr. Mauro Ricardo Costa
afirmou que infelizmente não se usa mais o
pelourinho, usa-se a Justiça. Como quer que o entendam? Assim mesmo, sem
dúvida. Sua intenção é manifesta. O contexto em que disse tamanha barbaridade
agrava ainda mais o seu sentido. Ele falava de tributação. No passado, eram
açoitados em praça pública aqueles que resistiam a pagar os onerosos impostos
da coroa portuguesa. Enfim, era um meio de escorcha. Mais tarde, o pelourinho
foi reservado aos negros, justo por ser considerado degradante. Como se
justificaria o saudosismo do secretário? Por amor à escorcha, ou por saudades
da escravidão? Provavelmente pelos dois
motivos. De qualquer modo, é uma insensatez sua permanência no cargo que ocupa.
Melhor será que volte para a Paulicéia, onde deve explicações à Justiça e ao
povo. Já quando de sua vinda para Salvador, o site do Bahia Notícias de 04 de
maio de 2013 iformava que o Sr. Mauro Ricardo Costa, ex-titular de Finanças das
gestões de José Serra e de Gilberto Kassab, em São Paulo, foi condenado pelo
Tribunal de Contas da União (TCU), em 2001, e pela Justiça Federal, em 2005. Ao
trazê-lo para assumir o cargo de Secretário da Fazenda de nossa capital, o
prefeito ACM Neto desrespeitou seu próprio
Decreto 23.739, de 2 de janeiro de 2013, que veda “a nomeação para provimento
do cargo de Secretários do Município [...] de pessoa que tenha sido
condenada em decisão com trânsito em julgado ou proferida por órgão
jurisdicional colegiado", na hipótese de "atos de improbidade
administrativa".
O prefeito tem agora mais um bom motivo para honrar o decreto que assinou. Os
cidadãos de Salvador não merecem a injúria que lhes foi feita pelo infeliz
secretário, que se revelou desastroso, indigno de seu posto. Não precisamos de
um sheerezade.
Não se defende justiça pelas próprias mãos no Estado Democrático de Direito. Porém cabe uma pergunta: onde os atuais defensores dos direitos humanos estavam no tempo da ditadura dos milicos gorilas que sequestravam, matavam e torturavam? Hipócritas!
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