sábado, 15 de fevereiro de 2014

UMA CARTA DE CECÍLIA MEIRELES


dana paulinelli                      

Apresento a vocês excertos de uma carta de Cecília Meireles na qual ela fala sobre o suicídio do primeiro marido: o pintor português Fernando Correia Dias. Não se trata, como bem coloca Arnaldo Saraiva, que tem a posse desta e de outras cartas de Cecília, de uma carta qualquer, trata-se, “mais do que de uma carta, de um texto de qualidade excepcional, humana e artística, e de um testemunho raro sobre a tragédia do suicídio do seu marido.” Cecília Meireles teve a vida marcada por perdas: perdeu seu pai três meses antes de seu nascimento, sua mãe aos três anos de idade e seu marido aos treze anos de casamento. Três perdas fundamentais regidas pelo número três. Mas Cecília teve também três filhas a quem doou sua vida e seu amor. E as filhas lhe deram o amor de cinco netos. E a vida se encarregou de dar fim à maldição tri-partite. Embora a própria vida tenha levado Cecília com 60 anos mais 3. Até lá, apesar da história marcada pela morte, Cecília não só optou pela vida, como optou por escrever a vida sorrindo. Mesmo nesta carta marcada pela dor, ela diz aos amigos: “Estou, ainda, por aqui. (Até quando?!) Mas estou muito pouco. Menos do que antes, que já era quase nada. Em todo caso, sorrindo para V. V., despedida já para qualquer instante.” Quase impossível encontrar uma única imagem em que a poeta não apresente um sorriso radiante, ainda que triste. E é assim que devemos ler esta carta trágica: com a luz de Cecília.
Abraço a todos,


Rio – 6 de janeiro de 1936.
Todos os dias querendo escrever a V.V. E sempre impossível! Primeiro, eu estava completamente tonta. Que lhes poderia dizer? Depois, doente, preocupada com mudança, inventário, e mil outras coisas, fiquei sem tempo para mais nada. Mas pensava sempre em V. V., os 6 desse grupo, e outros aí de Portugal que vieram à minha dor como se fôssemos realmente toda uma família meio dispersa que o perigo reúne por uma intuição do espírito, maior que a do sangue. Faço esta carta-circular porque não tenho força para escrever a cada um isoladamente. Levei um mês sem dormir nem comer. Sustentada por palavras e remédios. E sem nenhum interesse pela vida. Fazer o quê, — depois disto? Nem amar vale nada, então? Os amigos daqui, como V. V., dizem-me coisas: que é preciso viver, que eu tenho as crianças, que tenho a arte… A arte! Que importa! As crianças… — ah! não se é nada, em nenhum destino, nem no nosso. Se fôssemos, o Fernando não faria o que fez. Porque eu levei 13 anos sobre essa tragédia, tentando dominá-la, — e dando-me, dando-me, dando-me infinitamente, sob todas as formas, num sacrifício contínuo a um destino que estava sempre adivinhando. Que adiantou? Que a fatalidade se retardasse? Nem isso. Tudo esta previsto, fixo e há um ritmo inexorável. E quando penso na minha presciência de tudo que de grave se suspende em redor de mim e dos que amo; quando reflicto na resignação com que espero o que está para acontecer; e no desprendimento em que vivo perante a certeza dos meus insucessos, —pergunto, que teria sido feito de mim, neste momento, se a minha formação não fosse esta, uma vez que tudo isso não impediu o quase total desmoronamento da minha vida. E digo quase como pelo medo de assustá-los um pouco. Estou, ainda, por aqui. (Até quando?!) Mas estou muito pouco. Menos do que antes, que já era quase nada. Em todo caso, sorrindo para V. V., despedida já para qualquer instante.
(…)
Posso eu viver muito tempo (tudo acontece); pode a minha existência tomar os mais inesperados rumos (sei lá!) — mas esta noção da inutilidade humana; esta indiferença pela esperança, este desapego da lógica farão de mim cada vez mais uma criatura sem raízes na terra, prescindindo de tudo, e à mercê dos acasos que a queiram transportar. Falo como quem viveu 13 anos abolindo pouco a pouco todas as contingências. Como quem foi deixando de querer, uma por uma, todas as coisas que os outros acham necessárias, e se limitou a viver do sonho já sem acção e sem palavra, com o amor reduzido a um êxtase e a um símbolo, eternizando um instante do passado mais desejado que vivido. Mas pairava sobre essa renúncia um grande sentimento do universal, divinamente aceite. Queria que fosse sempre assim, até o fim. Até o fim natural. Nem o meu heroísmo serviu para nada. Então, para quê viver?
Não quero que V. V. fiquem tristes com esta carta. Que adiantam, essas considerações? Eu, por mim, aceito tudo. Mas dói-me o mal que o Fernando se fez. Às vezes, eu não acredito. Parece-me que estamos apenas à distância. Que ele chegará, logo mais. Mas eu o vi. E revolta-me estar viva, tendo-o visto assim. Ah! decididamente, não se morre de dor! - Tive de vir para longe, com as crianças — pobrezinhas! Tomei um apartamento na praia, em Copacabana, onde se pode descansar um pouco entre a montanha e o mar. Estou sozinha com as pequenas, e uma amiga que me acompanhou em tudo isto. Mas sinto que necessito ficar ainda mais só. A solidão tem sobre mim um grande poder. Purifica-me. Exalta-me, interiormente.
(…)
A Raquel diz que gostava daquele “ar não se importa” do Fernando… Eu gostava do seu desinteresse por certas coisas; mas foi o ar “não se importa” que o matou. Ele viu a vida com uma simplicidade que ela não tem. Passou de leve pelos amigos, sem se dar conta. Dedicou-se aos que nunca o entenderam nem amaram, — apenas o aproveitaram. Por estes sacrificou muito. E nenhum deles agora me apareceu. Andou sempre um pouco longe da verdade, à força de detestar a mentira. (Porque a verdade tem uma aparência mentirosa, também.) Teve tudo nas mãos. E não soube fazer nada com o que tinha. Eu quería que ele ressuscitasse, para me explicar porque fez isto. Porque eu o amei so bre todas as coisas, e não o entendi completamente, nem servi de nada, no único instante em que vale a pena servir a alguém.
Peço a V. V. todos que me desculpem esta carta imensa e triste. É como se estivesse conversando com V. V. todos, aqui perto. Escrevam-me quando puderem. Sobre outras coisas. Como antigamente. Façamos de conta que a vida é a mesma. Nem creio que venha a mudar. (…)
Saudades a todos. Com a maior amizade.
Cecília
Endereço:
Avenida Atlântica, 466. Apto 503.
Rio de Janeiro
Peço ao Osório comunicar aos amigos
este endereço.
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