MALU FONTES
Quantas gestões públicas e quantos desmandos, neste caso por parte das empresas privadas que nos últimos anos vêm administrando o sistema de ferries que fazem a travessia Salvador/Itaparica, foram necessários para assassinar o valor da Ilha como destino turístico? Não se trata de melancolia ou de saudosismo por parte de quem passou a infância ou a juventude em férias ou finais de semana de veraneio numa Itaparica bucólica, prazerosa e acessível, já que esse nunca foi meu caso. Trata-se da visão do inferno que são as filas vistas por qualquer pessoa que passe perto da área do ferry-boat, na zona portuária de Salvador, em todos os períodos de feriados prolongados ou datas especiais. Até mesmo quando vista pela televisão, a cena desperta, no mínimo, o alívio de não estar ali, naquela via-crúcis laica.
O que são aquelas filas de carros e pedestres sob o sol senão o arremedo de um ritual de penitência enfrentado por quem se aventura a fazer a travessia para o que seria sinônimo de lazer e descanso? Excetuando-se um contingente ínfimo de veranista da Ilha, formado por herdeiros das tradições do dinheiro velho de Salvador, que vai para lá porque este é um hábito repetido desde os avós e, principalmente, porque dispõe de uma lancha e de um motorista particular para expurgar os pecados na fila e levar de carro os mantimentos da estadia e da comilança da temporada, o resto dos usuários do ferry precisa se submeter a uma longa sessão de sacrifício, embora voluntária, previsível e planejada: horas e horas de fila sob o sol escaldante, em troca de umas cervas com a família e já com o futuro imediato determinado, ou seja, uma volta muito pior, pois quase sempre o fluxo de saída da cidade em véspera de feriados é menos concentrado no tempo que a volta. Segundo a imprensa, são cerca de 130 mil pessoas fazendo a travessia para a Ilha entre o fim de semana e o pós Ano-Novo. Assim, não é preciso jogar búzios para estar certo de que não há bate e volta de ferry-boat que possa dar conta desse fluxo de gente.
Após tantos anos com o trajeto para Itaparica transformado em tortura, o que não faltam são prejuízos de quem investiu do lado de lá da baía. Com a travessia transformada em prova de resistência para poucos e fortes e associando-se a isso os investimentos em escala meteórica concentrados rumo ao Litoral Norte de Salvador, esvaiu-se pelo ralo boa parte do patrimônio de quem tem casa ou hotéis e pousadas na Ilha. O valor despencou e o turismo foge, empurrado também pela mão fortíssima da violência. E quem nunca soube de uma casa de veraneio saqueada ou de um hotel ou pousada na Ilha onde hóspedes foram vítimas de arrastões no meio da noite, anda, no mínimo, desinformado. Assaltos à mão armada já começam a acontecer na fila de embarque, em Salvador.
Com a morte do turismo em Itaparica, causada pela decadência, acontece com o ferry o mesmo que se dá com o transporte coletivo de Salvador. Quem usa é quem não tem poder de voz para reclamar, já que basta tornar-se um pouquinho mais privilegiado economicamente para sair do aperto do buzu e migrar para o carro próprio, mesmo que este não seja mais o paraíso, em função dos engarrafamentos. Cada vez mais, quem usa o ferry é uma classe econômica cujo poder de queixa não atinge os ouvidos do poder político. Os que sabem e podem gritar foram os primeiros a abandonar os barcos do ferry. Migraram para o Litoral Norte, onde viceja o dinheiro novo e onde os novos poderosos fincam raízes, engarrafados aqui e acolá, mas em rodovia pedagiada e dentro de pick-ups refrigeradas. Enquanto isso, Itaparica agoniza e o poder público praticamente faz chantagem com o povo: se fizermos uma ponte...
* Malu Fontes é jornalista e professora de Jornalismo da Ufba
No dia 9 de julho de 2010 uma amiga que amava a Bahia e que havia mudado de São Paulo, na época com 66 anos foi brutalmente assassinada - a pauladas - durante um assalto noturno em sua casa.
ResponderExcluirO sonho de morar em um paraíso idílico terminou dentro de um saco rasgado, largado no necrotério - fora de geladeira - em uma outra cidade. Porque em Itaparica não havia delegado e nem necrotério, informaram. (Outras explicações dadas à família davam conta de que esse delegado só frequentava a Ilha uma vez por semana).
Também não haviam policiais ou peritos e o crime jamais foi investigado.
Constatando o caos, a família distribuiu as propinas de praxe em Itaparica e também naquela outra cidade (é claro!), e em menos de 48 horas mandou o corpo para ser enterrado no jazigo da importante família à qual ela pertencia.
A mudança de seus preciosos bens, contratados e regiamente pré-pagos nunca chegou a São Paulo.
That's Itaparica, that's Bahia: lei e ordem não existem. Só a selvageria e a corrupção.