Esse artigo é inspirado em outro, Se Roma fosse Salvador, pane e circo ou “Arena do nariz vermelho”, que escrevi em janeiro de 2013, sobre a construção de uma arena na Praça Castro Alves. Na época, diversas ações e mobilizações conseguiram interromper a ideia da Secretaria de Turismo do Estado da Bahia.
Se Veneza fosse Salvador, seu famoso carnaval, para desonerar o município, teria patrocínio de cervejarias, bem como um estádio de futebol com nome de cerveja nele.
Um templo do esporte, que remete à saúde, à união e à vida, com nome de bebida alcoólica que remete a doenças e vício, problemas na família e mortes no trânsito.
Claro que teríamos uma lata de cerveja imensa em plena Praça de São Marcos, e só seria permitido beber, no carnaval, a(s) marca(s) patrocinadora(s).
Mas tudo bem, afinal ela seria patrocinadora e investiria dinheiro noutras áreas da cultura e, investiu dinheiro, tudo pode: afinal, vivemos numa sociedade capitalista!
Como o meio mais conhecido de transporte é marítimo, se Veneza fosse Salvador as gôndolas já teriam sumido, pois seriam ruins de manutenção, lentas, e provavelmente voltariam a ser um meio de transporte com marca de algum banco estampada em suas laterais, e com materiais mais modernos e práticos, “respeitando” o padrão original.
Se Veneza fosse Salvador, as fantasias e máscaras de carnaval estampariam alguma marca da empresa que patrocinaria esses blocos, e não haveria do que reclamar, pois estavam patrocinando, então tome marca pra todo lado. Imaginem a Ponte de Rialto e a Ca’ d’Oro escondidas por trás de diversas placas sinalizando os patrocinadores do carnaval?
Será que esse investimento agressivo de empresas na cultura e na paisagem traria benefícios? Numa cidade cuja base da economia é o turismo, será que as pessoas viajariam à cidade descaracterizada, cheia de marcas de empresas à frente de sua cultura, arquitetura e urbanismo? Que decorrências ocorreriam por conta disso, para essa joia da Itália de do mundo? Que descaracterizações poderiam ocorrer com a chegada do capitalismo selvagem, invasivo, com ares de dono da situação?
Poderiam perguntar qual o problema de uma lata imensa de cerveja em Ondina. Pra mim, o mesmo que uma lata imensa de cerveja na Praça São Marcos. Ah, diriam muitos, mas Ondina não é a Praça São Marcos, não chega nem aos pés, não tem o valor histórico e estético da praça veneziana. E eu respondo, aqui, que Ondina não tem valor porque permitimos que a cidade fosse, sempre, devastada e desenfreadamente transformada em um Frankenstein. Quem conhece a “Teoria das Janelas Partidas” (procure no google, se não conhece), tem em Salvador um grande exemplo. Qual o problema de se descaracterizar uma casa antiga? De não se reconstruir um teatro velho, o São João? Qual o problema em se derrubar a Igreja da Sé (temos uma Praça da Sé sem sé, deveria se chamar Praça da Sem)? Qual o problema de mais outdoor, mais marcas pela cidade, uma lata imensa de cerveja em Ondina? Os poucos que resistem à devastação parecem ser uns chatos que atravancam o progresso, o avanço imobiliário, a economia e o desenvolvimento. O que seria de Veneza e de tantas cidades históricas, turísticas e patrimônios da humanidade, não fossem esses chatos…
Fala-se muito nas benesses que virão em decorrência dos investimentos de grandes empresas, na cidade. O Governo do Estado começou essa articulação de forma mais evidente com a parceria para a reforma do Estádio Otávio Mangabeira, e a prefeitura surfou na onda de forma mais contundente. Trouxe as cervejarias para o réveillon e carnaval de Salvador.
Ninguém é tolo e sabe que as empresas querem lucro, não estão entrando num negócio desses por caridade ou filantropia. Todos os lados sabem disso[1]. Acho que ainda é preciso avaliar os impactos, apesar da minha resistência a essa extrema exposição da cidade a marcas privadas. Garanto que não tive má-vontade com os sete anos da gestão da cultura no Estado, e nem tenho agora com a gestão do Município. Contudo, não consigo ficar calado frente a algumas situações que me preocupam e venho tentando dialogar desde a criação do blog, em 2006.
Falando em diálogo, houve uma entrevista do atual Secretário de Desenvolvimento, Cultura e Turismo de Salvador que, espero, tenha sido um lapso, ou mal transcrita, editada. Ao responder sobre a exclusividade da comercialização de marcas de cerveja, ele disse, ao Bahia Notícias: “Para mim está muito claro: a gente saiu de R$ 5,3 milhões de patrocínio de cervejaria para R$ 20 milhões, mais R$ 10 milhões para outros eventos. Então, são R$ 30 milhões. Aí alguém diz: ‘mas eu vou ter que beber a cerveja patrocinadora do carnaval?’ Sim. Em qualquer evento privado que você faz isso acontece.”
O carnaval, até onde eu sei, não é um evento privado. A cidade, apesar dos soteropolitanos emporcalharem ela diariamente com lixo, mijo e bosta, também não é privada (com perdão ao trocadilho). O Estado não é privado, a não ser em alguns países ditos socialistas que criaram um capitalismo de estado (mas isso é outra história). Venho falando de como valores, histórias, características e culturas da cidade vão morrendo, ou, na maioria das vezes, sendo assassinados pela ganância, estupidez, falta de visão e de sensibilidade dos poderes públicos e privados. Muito do que foi destruído, não tem volta.
As obras e ações não param, por um lado. Por outro, nosso patrimônio material e imaterial também não para de ruir, coisas antigas são desprezadas, esquecidas, e o trator do desenvolvimento e do capitalismo vão fazendo uma tabula rasa devastadora.
Torço pela vitória do bom-senso, do bom-gosto e, principalmente, pela vitória da cidade. Salvador já foi maltratada, enfeada, boicotada, vendida e descaracterizada demais.
[1] Estou consideravelmente cansado com os posicionamentos políticos da maioria. Criou-se um racha onde ações extremamente parecidas de partidos que estão em oposição são louvados ou demonizados a depender de que lado a pessoa está. Isso é muito feio e estúpido, e esse maniqueísmo só faz Salvador enterrar-se mais ainda em sua estética BAxVI tão prejudicial ao bom-senso. Prontamente taxam a pessoa de anti-isso ou anti-aquilo. Apenas quero debater a cidade e não acho que as decisões dos gestores públicos são vias de mão única, nem tampouco ninguém é dono da verdade; e isso serve para mim, também.
gil vicente tavares
COMENTÁRIO DO BLOGUEIRO: E, como já escrevi, Veneza estaria toda pintada com as abomináveis cores acrílicas que tanto agridem nosso centro histórico.
Comentei no blog do autor.
ResponderExcluirAqui acrescento: vamos morrer reclamando, criticando, alertando e nos aborrecendo porque "tá tudo dominado".