segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O POVO DO LAGO

A vida no Titicaca: mulher de uma comunidade dos Uro usa canoa para se deslocar entre moitas 
de junco-totora
                          A vida no Titicaca: mulher de uma comunidade dos Uro usa canoa                                       para se deslocar entre moitas 
de junco-totora
Uma forma curiosa de agrupamento humano chama a atenção na porção peruana do lago Titicaca. São as aldeias do povo Uro, construídas com a palha do junco-totora que cresce naquelas águas. Elas formam ilhas flutuantes com casas e balsas atracadas – tudo feito desse material. “Eles usam o junco para tudo e até comem certas partes dele”, conta o geneticista Fabrício Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele coordena o Projeto Genográfico na América do Sul, parte de um consórcio internacional que usa a genética para contar a história das migrações humanas desde a sua origem na África, e chegou a uma conclusão importante em seu estudo sobre os Uro: “Do ponto de vista genealógico, eles mantêm uma pegada dos seus ancestrais que é bem distinta das outras etnias andinas.” Isso significa que os habitantes das aldeias flutuantes – assim como os Uro bolivianos, que vivem em lagos menores e não constroem ilhas de junco – são descendentes daqueles que provavelmente foram os primeiros habitantes do altiplano andino.
Essa conclusão, publicada em setembro na revista PLoS One, refuta a suspeita de que os povos que atraem turistas nas ilhas flutuantes seriam descendentes dos Aimará travestidos de Uro para atrair visitantes e lucrar com o turismo. A desconfiança de que esses povos não seriam Uro originais surgiu anos atrás, quando um estudo antropológico revelou que o último indivíduo que falava uruquilla, a língua original dos Uro, teria morrido nos anos 1950. Separadas por mais de 400 quilômetros, as comunidades atuais dos Uro, instaladas no lago Titicaca, no Peru, e nos lagos Poopó e Coipasa, na Bolívia, em geral falam aimará e espanhol. “Por serem descendentes de povos pescadores e coletores, provavelmente os primeiros habitantes do altiplano andino, os Uro nunca fundaram grandes cidades e se mantiveram em grupos isolados, vivendo sempre junto à água”, conta Santos.
Reconstrução genealógicaA amostragem feita pelo Projeto Genográfico, que busca traçar a ancestralidade humana, ajuda a desenredar as origens dos grupos de etnias distintas. Antes de recolher o material genético, os pesquisadores aplicam questionários que garantem a participação apenas de voluntários cujos pais e avós pertencem à mesma comunidade e falam a língua indígena tradicional. “Às vezes encontramos 200 pessoas querendo participar do estudo, mas são quase todas da mesma família”, diz Santos. “Como buscamos uma representatividade das diferentes famílias, pedimos a participação de só uma pessoa de cada uma delas.” Essa estratégia reduz a probabilidade de viés na amostra e aumenta a informação genealógica disponível de cada comunidade. O grupo da UFMG trabalhou em parceria com o de Ricardo Fujita, da Universidad San Martín de Porres, no Peru, e o de Susana Revollo, da Universidad Mayor de San Andrés, na Bolívia, e contou com o crivo de integrantes do Projeto Genográfico mundial antes da publicação.
O estudo analisou o DNA de 388 Uro do altiplano andino, uma região árida com altitude média de 3.750 metros, entre a porção ocidental e a oriental da cordilheira dos Andes. Essa amostragem incluiu populações das margens peruanas do Titicaca, onde vivem cerca de 2 mil pessoas, e dos lagos bolivianos, que abrigam por volta de 2.600 Uro. Os dados de variações genéticas do cromossomo Y e das mitocôndrias permitiram reconstruir respectivamente as linhagens paterna e materna e mostraram uma grande heterogeneidade entre os diferentes grupos dos Uro.

Isso até era esperado. As comunidades dos Uro do Peru e da Bolívia estão isoladas do ponto de vista genético – não há casamento entre integrantes de comunidades distintas – e hoje são separadas por uma grande distância geográfica. Mesmo assim foi possível observar que eles têm raízes distintas das outras etnias. “Os Uro são em geral mais diferentes dos Quéchua e dos Aimará do que os Aruaque, que falam línguas amazônicas e vivem no sopé dos Andes”, diz Santos.
Os dados genéticos não permitem inferir uma data para a colonização do altiplano, mas são compatíveis com os indícios históricos e arqueológicos de que os Uro chegaram àquela região antes dos outros povos que lá estão hoje, como os Quéchua e os Aimará, descendentes dos Incas. “Os arqueólogos estimam que a colonização do lago Titicaca por não agricultores, como os Uro do passado, aconteceu por volta de 3.700 anos atrás”, conta Santos. Do ponto de vista genético, as análises mostram uma assinatura de expansão populacional apenas para os grupos agricultores, que há cerca de 3 mil anos espalharam suas plantações de milho e batata pelos Andes. Os pescadores permaneceram onde estavam, em grupos pequenos e esparsos.
As conclusões foram bem recebidas pelas comunidades estudadas, a quem os pesquisadores apresentaram os resultados em maio de 2013, antes da publicação do artigo científico, cujo primeiro autor é o peruano José Sandoval, um Aimará. Para deixar claro o significado dos achados genéticos a seus anfitriões, Santos afirmou: “A genética traz apenas uma informação sobre a ancestralidade dos Uro, que, a critério da comunidade, pode servir de apoio para a sua identidade cultural, que é bem documentada”. Para o geneticista mineiro, o modo de vida de uma comunidade é o mais importante para determinar sua identidade cultural e, no caso dos Uro, parte disso foi finalmente reconhecido: no início de 2013 o governo peruano classificou os costumes dos Uro como patrimônio cultural da nação, pelo uso de práticas ancestrais no manejo do junco-totora. “A genética pode revelar dados significativos do passado desconhecido de um povo”, diz Santos. “Com o auxílio da ciência, precisamos reconstituir a história dos povos nativos das Américas e apresentá-la para a sociedade.”

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