“Morreu violentada por que quis
Saía, falava, dançava
Podia estar quieta e ser feliz
Calada, acuada, castrada
(…)
Queremos o seguinte no jornal
Quem mata menina se dá mal
Sendo gente bem ou marginal
Quem fere uma irmã tem seu final”
da canção Mônica, de Ângela Ro Ro
Em 1985 Ângela Ro Ro compôs uma das canções mais políticas já escritas no Brasil, Mônica, na qual assumia publicamente a defesa da menina assassinada depois de uma balada, ampliando enormemente a voz dos que exigiam justiça diante de uma opinião pública machista e cheia de preconceito disposta a transferir a culpa para a vítima. No curto momento de esperança coletiva nas instituições democráticas que foi aquela época em meados dos anos 80, o caso Mônica Granuzzo, como ficou conhecido, abriu uma grande discussão e colaborou para uma mudança de atitude na sociedade em geral que contribuiu muitos anos depois para que a lei Maria da Penha viesse a ser sancionada.
Contudo, creio que o nome de Mônica jamais viria a batizar uma lei no Brasil: sem desmerecer em nada o grande engajamento de Maria da Penha e sua grande contribuição social, parece que era necessário que as barbaridades contra uma mulher atingisse a condição de violência doméstica para poder ter o “aval de reconhecimento moral” da sociedade brasileira. Daí que, como a lei Maria da Penha tem seu importante foco na violência dentro do lar, lugar protegido do olhar do outro, o caso Mônica, se acontecesse nos dias de hoje, provavelmente não poderia nela ser enquadrado. Talvez não seja por acaso o apoio tão aberto por parte das religiões majoritárias a esta, repito, importante lei.
A ideia de que um adolescente entre 16 e 18 anos não deveria estar se divertindo na balada por a rua (o espaço não-doméstico) ser no Brasil um lugar de nenhuma segurança, a ideia de que a vítima do assassinato tem culpa por ter saído para se divertir, é a principal denúncia da canção de Ângela Rô Rô, e ela foi amplamente usada no caso Mônica para encobrir o moralismo machista e já ressurge agora no assassinato de Kaíque Augusto, pretendendo encobrir duplamente homofobia, a de quem o matou e a de quem tenta transferir a culpa para a vítima. Se a abertura política trouxe para o Brasil dos anos 80 uma nova onda de liberdade, inclusive sexual, nos últimos anos, a afirmação da cultura LGBT, da qual as paradas são o seu momento mais popular, abriram um campo maior para afirmação individual de sexualidades. A fragilidade da adolescência é então submetida a uma grande onda de ressentimento e ódio que pratica de vez em quando a imolação física em alguns, ampliada e multiplicada depois no discurso. Mônica permanece em algum lugar do inconsciente coletivo como a “putinha” e Kaíque é posto logo na gaveta da “bichinha”: e esta ação, pejorativa que é, desprotege ainda mais os mais fragilizados.
Mesmo considerando todas as estatísticas absurdas de crimes e violência do país, que faz compreensível a apreensão de qualquer família ao permitir um filho sair para a balada à noite, não pode ser aceitável que tanto moralismo seja capaz de insistir em tornar nebulosas as motivações para as torturas a que Kaique Augusto ou Alexandre, cuja mãe foi entrevista por Stephen Fry, foram submetidos antes de ser assassinados.
Eu resisto muito a comparações com o facismo, mas diante dos casos de Kaíque e Alexandre, quem insiste hoje no Brasil em não reconhecer as razões homofóbicas destes crimes bárbaros, é o equivalente de um alemão médio morador de uma cidade grande que, em pleno ano de 1943, tendo visto em 1938 a noite do cristal, tendo presenciado a expulsão de viizinhos judeus, tendo escutado notícias sobre as deportações, ainda assim dissesse que não teria como acreditar em boatos sobre câmara de gás porque nunca viu nenhuma.
Escrita em outro contexto, a canção Death of a Disco Dancer dos Smiths (traduzida ao português contemporâneo, A morte do baladeiro) é tristemente atual. Termino aqui como um apelo e uma homenagem.
“A morte do baladeiro
bem, isso acontece muitas vezes por aqui,
E se você acha que a paz
é uma meta comum
isso só mostra
o pouco que você sabe
A morte do baladeiro
Bem, eu preferiria não me envolver
eu nunca falo com meu vizinho,
eu preferiria não me envolver
Paz, amor e harmonia?
Tá certo, tudo bonitinho,
mas talvez só no próximo mundo…”
Cultura e Cidade
Márcio C. Campos
Márcio Correia Campos é Professor de Projeto, Teoria e Crítica de Arquitetura na UFBA, formado por esta universidade e Mestre em Arquitetura pela TU-Vienna.
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