Marcelo Torres
Desde os tempos de Salvador, toda vez que passava pelo Rio Vermelho, a pé ou de carro, porque de ônibus ou de bicicleta não dava pé, este pecador prestava atenção num letreiro há anos pregado lá no alto de um templo:
“Arrependei-vos e crede no Evangelho.”
De dia, indo ou vindo, ali entre o Largo da Mariquita e o Largo de Santana, há de se notar a famosa frase bíblica, um chamado para a conversão que teria sido feito por Jesus Cristo, segundo Marcos.
Curioso – talvez estratégico – é que o aviso reluz alto entre notórias casas profanas da cidade, como o Boteco do França, o Botequim São Jorge e o Bar Padaria, na mais famosa zona boêmia de Salvador.
À noite, então, é que o imperativo fica ainda mais vistoso, porque iluminado em verde neon. Já de longe se vê a frase, que paira sobre carros, ônibus, postes, prédios, pessoas, árvores.
“Iemanjá se mira
Em seu líquido espelho
De búzios e luzes
Quando a voz atroz
Dublando Jeová
Adverte Iemanjá
Num tom grisalho, velho:
Arrependei-vos
E crede no Evangelho!” (Canção do Monte Conselho, Nei Lopes)
Não há como não reparar o chamativo neon verde.
Veem-no os dois banhistas da noite, que se demoram entre pedras e areias; os andantes que vagam sem pressa pelas calçadas; os meninos que vendem amendoim nas mesas dos largos; os homens e mulheres a beber e comer.
Avistam-no os viajantes, de lá das janelas dos hotéis ou das piscinas nos terraços. Quantos, ali, viajam a negócios? Quantos são turistas? Quantos visitam igrejas? Quantos são os gringos? Quantos fazem turismo sexual?
Arrependei-vos e crede...
E veem-no, do alto dos prédios, os moradores do Rio Vermelho, de Amaralina e da Vasco da Gama, para que se arrependam de toda gula e avareza, da ira e da luxúria, da inveja, da preguiça, da vaidade.
Arrependei-vos, ó reles pecadores!
Desde os tempos em que morava em Salvador, toda vez que passava pelo Rio Vermelho, eu sempre olhava lá para cima, não necessariamente para me arrepender e crer, mas sim para contemplar aquela conjugação.
Achava divina a conjugação do verbo crer. Admirava esse imperativo afirmativo, ainda mais na segunda pessoa do plural - crede vós. E lá vinha o futuro do presente do indicativo: eu crê-lo-ei; tu crê-lo-ás; ele crê-lo-á; nós crê-lo-emos; vós crê-lo-eis; eles crê-lo-ão.
Crê-lo-ão eles, os crentes?
E viajava no verbo até o pretérito perfeito simples: eu cri, tu creste, ele creu, nós cremos, vós crestes, eles creram. Nessa viagem, o “cri” e o “creu” faziam surgir uma voz a indagar:
- É cri mesmo?
- Sim, verbo crer, primeira pessoa do....
- E esse creu! É creu mesmo?
- Sim, ele creu.
- Ele creu?!?
- Sim: é terceira pessoa do singular do pretérito...
- Chega! Cruz credo!
Esses dias, revisitando Salvador, ainda no hotel, entrei no Google e dei um pulo na Tabacaria - a Tabacaria de Álvaro de Campos, o heterônimo de Fernando Pessoa - e lá estava o “cri” num verso, um verso que parecia epitáfio: “Vivi, estudei, amei, e até cri”.
Outra busca eletrônica e chego à Poesia Seleta do pernambucano Benedito Cunha Melo:
Fez-me lembrar a voz do grilo
Noite adentro, aqui, ali
A paz do mundo tranquilo
Em que já cri...ci...cri.
Então, lá fui eu: Pituba, Amaralina, Rio Vermelho, Mariquita e, lá no alto: “Arrependei-vos e crede no Evangelho”. Descendo a vista, porém, via-se na parede bege do templo evangélico uma pichação:
“Enfia a mão no bolso, querido irmão”.
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