O governador do Rio declarou que os traficantes estão desesperados. Enquanto isso, o porta-voz da Polícia Militar orientava a população a manter a calma durante os ataques da bandidagem, explicando que é melhor perder o patrimônio do que a vida. E assim, com os bandidos em pânico e a população em paz, o Rio de Janeiro e o Brasil celebrarão mais uma vitória dos seus Napoleões de hospício contra o crime.
Foram décadas de investimento público na formação do exército de marginais. Proibição de drogas altamente rentáveis, tolerância populista aos territórios das “bocas de fumo”, polícia corrupta garantindo o ir e vir da cocaína e dos fuzis, governantes fazendo acordos tácitos com chefes de morro em nome da paz e dos votos. De repente, as autoridades resolvem melar o jogo — ou a parte mais visível dele.
A ocupação policial de favelas, enxotando traficantes, foi uma medida ousada. Só faltou combinar com a indústria da delinquência, alimentada a pão-de-ló por tanto tempo.Para o público, que se sente vingado pelo Capitão Nascimento quando ele espanca um político na tela do cinema, está tudo OK. As coisas são simples assim. O ideal seria que Wagner Moura assumisse o lugar do secretário Beltrame e acabasse de vez com a raça dos vilões — cuja vocação é essa mesma, apanhar.
O problema é que na vida real o roteiro é diferente. Não basta dizer que o inimigo agora é outro e ensinar o pessoal a detestar as milícias enquanto come pipoca. O inimigo agora é o mesmo — exatamente aquele que o poder público cultivou carinhosamente por uns 30 anos, com a hipocrisia bilionária das drogas proibidas e da inundação das favelas com armamento de última geração (que ninguém sabe, ninguém viu por onde passou).
Uma indústria robusta, que teve até blindagem ideológica: a claque do Capitão Nascimento chegou a apontar, como vilão da violência urbana, o maconheiro do Posto Nove.Até Michael Jackson pediu autorização ao tráfico do Morro Dona Marta para filmar seu clipe mundial. O Rio de Janeiro e o Brasil assistiram, consentiram, dançaram conforme a música. O poder marginal virou uma instituição em solo carioca.
Na dinastia Garotinho, o antropólogo Luiz Eduardo Soares tentou depurar a polícia e quebrar a espinha dessa indústria. Foi expelido. Seu pecado: atacar a cadeia de complacências jamais quebrada por qualquer governo do Rio ou de Brasília.
De repente, como no cinema, vem a ordem: vamos invadir. Um ato heroico do governador Sérgio Cabral e de seu respeitável secretário de Segurança. Apenas um ato heroico.
Quem quebrou a espinha da indústria “Drogas & Armas S.A.”? Quem asfixiou seu poder de fogo (econômico e bélico)? Quem interveio para valer nas polícias fluminenses, madrinhas e sócias da firma? Não se tem notícias. Com quantos soldados confiáveis se finca UPPs suficientes para empurrar o poder marginal sabe-se lá para onde? Melhor convocar o exército chinês.As autoridades do Rio de Janeiro iniciaram, com amplo respaldo do eleitorado, uma guerra que não sabem como vai terminar.
Foi interessante ver alguns morros libertados do tráfico. Não foi interessante ver a proliferação de arrastões em áreas nobres e relativamente tranquilas da cidade. O que é pior?
No cardápio das escolhas de Sofia, surge a onda de atentados. Quem já foi arrancado de seu carro para não tostar junto com o patrimônio não está achando a menor graça nesse “Tropa de Elite 3”. Qual é o final possível desse filme?
O Bope vai tomar a Rocinha numa batalha sangrenta e ficar lá para sempre? O tráfico, conformado, vai desistir dos territórios e das armas e se mudar pacificamente para a internet? Mais fácil o Rio virar Bagdá.
Não se combate um sistema criminoso enraizado no Estado com um punhado de operações policiais estoicas. Na Itália, a operação Mãos Limpas parou o país. No Brasil, o governo federal sequer se envolve. No máximo, tem espasmos de solidariedade e empresta umas tropas para o teatro de operações.
A pouco mais de um mês de sua posse, a presidente eleita não dá uma palavra sobre a guerra. Parece estar preparando a transição para governar a Noruega.
Possivelmente Dilma Rousseff esteja sendo orientada por seus marqueteiros a ficar longe das chamas do Rio. É o que os especialistas chamam de “evitar o desgaste”. Desgaste mesmo é entrar num ônibus que pode virar um microondas na próxima esquina. Mas esse calor não chega até Brasília.
Os estrategistas do novo governo estão muito ocupados com temas mais urgentes, como a cota de mulheres no ministério. O show tem que continuar (com CPMF, que ninguém é de ferro).
Enquanto isso, o Rio se firma como capital nacional de um flagelo internacional, torcendo pela TV para que o Capitão Nascimento apareça no “Jornal Nacional” enxotando todos os bandidos da tela.
Quem sabe o super-homem não aparece também, com um plano nacional de segurança pública?
Guilherme Fiuza
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