quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Monteiro Lobato e o movimento negro por James Martins

Antes de entrar no assunto em questão, anunciado no título, devo fazer algumas ressalvas que, no entanto, já sei que não vão adiantar muita coisa para os homens e mulheres de má vontade. Assim mesmo, lá vão:
1- Não sou branco. Mas também não sou o negão que a menina imaginou lendo os artigos que publico aqui. Não passo de um típico mestiço brasileiro, mulato evidente.
2- Sim, sei que existe racismo no Brasil, fortíssimo por sinal, e também na Bahia e até mesmo no Curuzu. Bom, acho que tá bom. Agora vamos ao que interessa: aproveitando o gancho do último sábado, 20 de novembro, dia da Consciência Negra, resolvi entrar num assunto que já está até meio velho, mas que parece não ter fim (“a escravidão permanecerá, por muito tempo, como a característica nacional do Brasil”). A saber, a tentativa de veto ao livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, do currículo das escolas públicas, pelo Conselho Nacional de Educação. Ou, segundo recomendação do órgão, caso seja adotado, que o livro venha com uma nota informando tratar-se de obra “racista”. O autor da denúncia, o mestrando em relações raciais da UnB Antonio Gomes da Costa Neto, acredita que o livro de Lobato “deixou para trás as regras de políticas públicas para as relações etno-raciais” e tenha o potencial de “ensinar a criança a ser racista”.

Acho tudo isso um absurdo, mas vou explicar minha posição contando um caso familiar. Dia desses estávamos em casa, minha mulher Alessandra, meu amigo-irmão Arouca e eu. A conversa circulava por diversos temas, do sabor da jaca em São Paulo até o Bahia na série A... e chegamos ao racismo e à escravidão no Brasil. Vou abreviar: recitando Castro Alves, trechos do Navio Negreiro, que sei de coração, eu disse o seguinte: “E pensar que naquela época, para muita gente boa, muito grande autor, era mesmo normal ter aqueles pretos ali amontoados como alimária nas senzalas e tal”. E ouvi de Arouca, adiantando a época: “Monteiro Lobato, por exemplo, escreveu coisas racistas”. Retruquei: “Não. Lobato não escreveu nada a favor de racismo algum”. E ele: “Mas também não escreveu nada condenando, não é?”. E na sequência da conversa, que, naturalmente, entrou no assunto deste artigo (a tentativa de censura ao Caçadas de Pedrinho) eu dizia para Arouca que havia nisso uma grande confusão, porque no Sítio do Pica Pau Amarelo a descrição social obedece ao modelo vigente à época (a senhora branca dona do sítio; a senhora negra cozinheira; o menino estuda; a menina não; os roceiros ingênuos, analfabetos; etc.), mas que também, e sobretudo, há na referida obra um componente subversivo, inconformista, questionador, que supera e põe em xeque quaisquer ordens sociais (a boneca que fala e, mais ainda, pensa; o sabugo que é o sábio acadêmico, formado dentro dos livros, mas vive tomando baile da boneca, que é, note-se, feminina; Narizinho, tantas vezes, embora não freqüente escola, é muito mais perspicaz que o corajoso Pedrinho, que tem medo de vespa; Dona Benta aceita, participa e encoraja as aventuras absurdas das crianças, inclusive quando elas cheiram um pozinho para viajar; o faz-de-conta; etc.). Gilberto Gil, “aquele preto que você gosta”, descreveu bem. No Pica Pau Amarelo é “marmelada de banana / bananada de goiaba / goiabada de marmelo”. E nenhum reacionarismo sócio/racial sobrevive a isso. Mas censura não tem fim, felicidade sim.

Eis o que eu quero dizer: o estado de coisas, o ar que se respira no Sítio do Pica Pau Amarelo, onde os netos questionam a (e discordam da) avó; a boneca (para Ziraldo a maior personagem criada na literatura brasileira) repensa tudo (ela inclusive tem várias insurreições racistas contra Tia Nastácia, sendo devidamente repreendida por outras personagens); onde o pessoal da mitologia grega convive com criações de Grimm e Andersen e Barrie e têm seus rumos alterados... Enfim, num lugar, numa obra como a de Monteiro Lobato, o livre pensar e o alimento para o pensamento (a pletora de informações das mais diversas culturas e ciências) são o antídoto poderoso contra todos os totalitarismos, racismos, machismos e outros ismos que tais. Inclusive aqueles que contaminem, por ventura, ao próprio autor. Mas também contra os totalitarismos disfarçados de reparação ou de busca pela igualdade como o que ora se apresenta contra a obra clássica do autor. Não podemos aceitar. Ao contrário do que disse o Sr. Costa Neto, o Sítio tem, isso sim, o potencial de tornar a criança mais crítica, e, logo, apta a entender que racismo é uma burrice infeliz. E é também ao vírus que peguei lendo e relendo as Caçadas de Pedrinho, os Serões de Dona Benta, a Viagem ao Céu, que recorro para avaliar como estúpida a recomendação do Conselho Nacional de Educação. Não é por lermos muito Lobato que o bicho está pegando, ao contrário. Inclusive, a leitura que o CNE fez do livro em questão é digna dos “alternativos de Salvador” em compreensão aviltante.

Sintomaticamente, Caçadas de Pedrinho é um livro que critica com acidez a burocracia estatal, comparando o Estado a um paquiderme sem competência para resolver simples problemas. É a história do rinoceronte Quindim, que fugiu de um circo. Daí o governo cria um “Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte”, monstro burocrático com um chefe e 12 auxiliares, muito bem remunerados, além de “um grande número de datilógrafas e encostados”. Todo esse pessoal se esforça ao máximo para não encontrar o bicho, uma vez que, se isso acontecer, eles perdem sua boquinha. Quindim acaba ficando no Sítio, cúmplice das crianças e em desafio ao Estado caçador. Por esse conteúdo onde os meninos protagonizam a rebeldia, a obra de Lobato chegou a ser classificada de “comunista” pelo padre jesuíta Sales Brasil, em 1959. Agora é o movimento negro que quer barrá-la, argumentando que o racismo da obra se manifesta em passagens como "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão". Numa cena em que a velha (ainda se pode falar “velho” no Brasil?) demonstra agilidade para fugir das onças. Em sua defesa de Lobato, a escritora Ana Maria Machado lembra que Tia Nastácia “encarna a divindade criadora (...). Ela é quem cria Emília, de uns trapos. Ela é quem cria o Visconde, de uma espiga de milho. Ela é quem cria João Faz-de-Conta, de um pedaço de pau. Ela é quem ‘cura’ os personagens com suas costuras ou remendos. Ela é quem conta as histórias tradicionais, quem faz os bolinhos. Ela é a escolhida para ficar no céu com São Jorge”. A verdade é que as personagens negras do Sítio são generosas e lindas, Tia Nastácia e Tio Barnabé são criações maravilhosas, pobres de dinheiro (reflexo da realidade), mas ricas de conhecimentos, doçura e sabedoria (idem).

O problema é que a escravidão no Brasil foi um processo tão cruel (e duradouro!) que o trauma é grande demais. Por isso, há como que uma indulgência mórbida em relação à causa negra. E uma espécie de “caça às bruxas”. Assim, se alguém por acaso se coloca contra as cotas para negros nas universidades é imediatamente tachado de racista. E essa simplificação, demasiado negativa, tem levado muita gente a mentir sua posição com medo de levar o selo, criando uma censura tácita que até então servira justamente aos antípodas das causas negras. Os donos do poder. Será que o que se quer é apenas trocar o poder de mão (de cor?) e não reestruturar o caráter das relações humanas? Mas eu, por exemplo, que sou um mulato escuro (o desrespeito à miscigenação que fazer de mim um preto na tora, mas lembro agora um verso de Leopoldo Madrugada: “não sou preto, eu chego perto”) não sou a favor das cotas. O professor Waldir Freitas Oliveira (Obá de Xangô, a única pessoa a quem Mãe Stella tem obrigação de tomar a bênção) também não é. E não somos racistas nem alienados, repito. O movimento negro, que em geral reivindica e denuncia coisas e causas verdadeiras e importantes, está emburricando estas discussões como os partidos políticos imbecilizaram o “assunto aborto” para ganhar os votos dos cristãos. E volto ao livro do Lobato, chamado de “comunista” por um padre e de “racista” pelo movimento: burrice é burrice em qualquer canto, seja de padre ou de preto. O diabo é que o texto está longo demais e eu queria escrever um outro, enorme, só sobre Monteiro Lobato. E outro, ‘inda maior, sobre a minha experiência como negro-mestiço no Brasil. Mas é preciso respeitar a paciência do leitor. Então encerro citando o próprio Lobato (nome do bairro do petróleo), autor de O Presidente Negro: “Um país se faz com homens e livros”. Quando assim for, finalmente não precisaremos mais da paródia: “Um país se faz com homens e cotas (e censura aos grandes livros)”.

"James Martins é poeta, sem livros publicados. Com o recital 'pós-nada - q a poesia precisa voltar a ñ ser o q era antes' (2003), raras vezes apresentado e nunca em condições ideais, reformulou algo do jeito de dizer e mostrar poemas e acabou chamando a atenção do poeta Augusto de Campos, de quem se gaba da amizade. Desde meados de 2009 redige a coluna Cheio de Arte, no site Bahia Notícias (Samuel Celestino)."

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