"Longe do Paraíso" e os maiores fotógrafos do cinema
Alguns espectadores andam impressionados com a fotografia de "Longe do Paraíso", em cartaz em São Paulo. Talvez ela seja mesmo a melhor coisa do filme de Todd Haynes, que teria chances de ser um belo melodrama se não fosse tão previsivelmente correto, do ponto de vista moral.Haynes se inspira abertamente no cinema de um gênio de Hollywood, o diretor de origem austríaca Douglas Sirk. Para quem teve a oportunidade de ver os filmes de Sirk no cinema, em poderoso technicolor, é porém uma grande decepção assistir ao subproduto de Haynes.
Falta a este não apenas a dimensão trágica que Sirk sabia imprimir às suas histórias (o melodrama é uma variante da tragédia para a cultura de massas; e Sirk foi em Viena também um encenador de tragédias), mas também a capacidade de fazê-lo sob uma base contemporânea.
O melodrama, da mesma forma que a tragédia, precisa de um mundo de proibições e regras muito restritas para fazer espocar na narrativa a "hybris" --a desmedida que de repente atinge o(s) personagem(ns), levando-o(s) a romper com uma regra social compartilhada.
Quando Sirk filmava "Imitação da Vida", sobre o racismo americano, ou quando insinuava o homossexualismo em "Palavras ao Vento", ele tinha diante de si uma sociedade altamente discriminatória nestas questões. Seus filmes (e seus personagens), todos eles dotados de uma crueldade sem par sob a capa da generosidade, afrontam estas fronteiras.
Haynes vive numa sociedade moralmente aberta e politicamente correta --e foi incapaz de ver o que seria neste momento, neste mundo, o novo regime de interdições e hipocrisias. Por isso ele faz um filme de época. Ele precisa das proibições do passado para desenvolver temas que, na atualidade, provocariam outras consequências. No fundo, o filme é apenas um exercício formalista, um pastiche.
No encalço de um melodrama contemporâneo, Almodóvar faz muito melhor que Haynes --desafiando por exemplo a questão dos papéis sexuais e da lógica dos afetos na família, que ainda são definidos de maneira restritiva e convencional. E mesmo Fassbinder pôde ir mais longe no melodrama, ao abordar novas questões, como a relação entre europeus e imigrantes ou as consequências da reconstrução da Alemanha no pós-guerra e da obliteração do passado nazista.
Mas falávamos da fotografia de "Longe do Paraíso". Por mais imitativas que elas sejam, as imagens do filme impressionam. É um mérito do diretor, mas sobretudo de seu fotógrafo, Edward Lachman, que soube reconstituir o technicolor antigo, com composição rigorosa de cores e volumes --e o fez até exageradamente, reforçando, à guisa de crítica, o kitsch característico do gênero.
É com filmes assim que o espectador percebe quão importante é a fotografia no cinema. Mas é também nesses momentos que ele pode criar uma impressão superficial do trabalho cinefotográfico.
Este não consiste apenas em apresentar imagens com cores bonitas e paisagens sublimes, mas muito mais em escolher os melhores ângulos, iluminá-los bem, saber organizar e desenvolver os planos segundo o ponto de vista pretendido pelo diretor, dar continuidade e unidade às imagens fragmentárias próprias do cinema e permitir que a imagem, pela sua plasticidade e invenção, sintetize e reelabore o conjunto dos elementos de um filme.
O cinema é basicamente a impressão da luz sobre a película. Daí a importância do fotógrafo nesta arte. Técnico e criador imprescindível ao cinema, o fotógrafo é no entanto frequentemente esquecido nos comentários da crítica e na observação do espectador.
A fim de fazer recordar e/ou informar o espectador-leitor a respeito da fotografia no cinema narrativo (não-experimental), esta Pensata faz uma lista de alguns dos principais fotógrafos, sem ordem cronológica nem de importância, começando, é claro, por Edward Lachman, que assina as imagens irônicas de "Longe do Paraíso".
Edward Lachman
Aos 54 anos, é um dos maiores diretores de fotografia do cinema atual. Foi assistente de quatro dos grandes fotógrafos modernos: Vittorio Storaro (em "La Luna", de Bertolucci), Sven Nykivst (o fotógrafo de Bergman, em "Hurricane", de Jan Troell), de Robby Mueller (em "O Amigo Americano", de Wim Wenders) e de Raoul Coutard (em "Passion", de Jean-Luc Godard).
Prefere trabalhar com diretores estreantes e ousados do cinema americano e internacional. Fez a fotografia de "Stroszek" (77), de Werner Herzog, "Tokio Ga" (83), de Wenders, "True Stories" (86), de David Byrne, "Eric Brockovich" (99), de Steven Soderbergh, e "Virgens Suicidas" (98), de Sofia Coppola, entre outros. Foi co-diretor de "Ken Park", ao lado de Larry Clark, este também um fotógrafo.
Russel Metty
O trabalho de Metty, chamado em sua época de "o príncipe da cor", é a grande inspiração de Lachman em "Longe do Paraíso".
Metty foi o diretor de fotografia de algumas das maiores obras de Douglas Sirk, como "Tudo que o Céu Permite" (55), "Palavras ao Vento" (56), "Tempo de Amar, Tempo de Morrer" (57) e "Imitação da Vida" (58).
Quem viu algum desses filmes no cinema, sentado na sala escura, sabe do que é capaz o talento desse fotógrafo. No preto-e-branco, Metty também foi um notável criador. É ele que assina as imagens de "O Estranho" (46) e de "A Marca da Maldade" (57), ambos de Orson Welles.
Entre os mestres da cor em Hollywood, também não se pode esquecer de Robert Burks, que assinou os principais filmes de Hitchcock nos anos 50/60, como "Janela Indiscreta" (54), "Vertigo" (58) e "Os Pássaros" (63).
Gregg Tolland
O longuíssimo plano-sequência inicial de "A Marca da Maldade", concebido com a ajuda do olhar de Metty, é um dos "tour de forces" do cinema de Orson Welles. Mas a estética wellesiana foi mesmo firmada em "O Cidadão Kane", graças às artes do fotógrafo Gregg Tolland, que releu o cinema expressionista na ótica moderna e também criou a profundidade de campo (foco total da imagem, na frente e no fundo) tão cara ao diretor.
Tolland é um dos gênios da fotografia no cinema e, embora tenha importantes trabalhos com John Ford ("As Vinhas da Ira", 40) e William Wyler (vários), sua obra estará sempre associada à parceria criadora com Welles.
Fritz Arno Wagner e Karl Freund
São os dois maiores fotógrafos do expressionismo alemão. Wagner fotografou "Nosferatu" (22), de Friedrich Murnau, e "M, o Vampiro de Dusseldorf" (31), de Fritz Lang, entre outros clássicos.
Freund é o responsável pelas imagens de "Metrópolis" (26), de Lang. O que o cinema deve a eles é incalculável. Se seguíssemos as categorias do poeta Ezra Pound, ambos poderiam ser classificados como "inventores" de uma linguagem.
Boris Kauffman e Edward Tissé
O cinema é também imensamente devedor destes dois fotógrafos russos. Kauffman era irmão do diretor Dziga Vertov e imigrou na época revolucionária soviética para a França. Foi o fotógrafo de Jean Vigo, realizando as imagens ultramodernistas de "A Propósito de Nice" (30), "Zero de Conduta" (33) e "Atalante" (35). Mais tarde mudou-se para Hollywood, onde trabalhou com Elia Kazan, fotografando "Sindicato de Ladrões" (54), "Baby Doll" (56) e "Clamor do Sexo" (61) --este uma obra-prima do cinema em cores.
Tissé é o diretor de fotografia de praticamente todos os filmes de Eisenstein, desde as experiências futuristas de "O Encouraçado Potemkim" (25) e "Outubro" (27) até o neo-expressionismo de "Ivan, o Terrível" (45). É ele também que ajuda a fixar uma certa fotogenia do mundo mexicano em "Que Viva México" (31), que irá repercutir posteriormente no trabalho de Welles ("É Tudo Verdade"), no de Gabriel Figueroa e mesmo de Glauber Rocha.
Gabriel Figueroa
Este mexicano é o maior fotógrafo do cinema latino-americano. O único que talvez possa ombreá-lo (um pouco) é o brasileiro Edgar Brasil (de "Limite").
Figueroa trabalhou com Tolland em Hollywood e fez a fotografia de "O Fugitivo" (47), de John Ford. No México, consolidou seu modo original de enquadrar e iluminar as paisagens e os rostos latino-americanos --sobretudo nos filmes de Luis Buñuel, como "Os Esquecidos" (50), "Nazarin" (59) e "O Anjo Exterminador" (62).
Claude Renoir
Se Metty é o príncipe da cor em Hollywood, na França este título deve ser dado a Claude Renoir, neto do pintor Pierre Renoir e sobrinho do diretor Jean Renoir.
São de sua lavra as imagens exuberantes de "Carrosse d'Or" (52) e "Elena e os Homens" (55). Claude é também um ótimo fotógrafo do PB, em clássicos como "Toni" (34), "Partie de Campagne" (36) e "A Regra do Jogo" (39) --todos filmes de Jean Renoir.
Henri Alekan e Sacha Vierny
Alekan assinou a direção de fotografia de vários clássicos franceses dos anos 40 e 50. Foi "ressuscitado" nos anos 80, quando participou das experiências contemporâneas de Raoul Ruiz ("O Território", 81), de Alain Robbe-Grillet ("A Bela Cativa", 82) e de Wim Wenders ("O Estado das Coisas", 82, e "Asas do Desejo", 87).
O trabalho de Vierny é indissociável do de Alain Resnais, para quem criou as imagens poderosas de "Hiroshima Meu Amor" (59), "O Ano Passado em Marienbad" (61) e "Muriel" (63). Também trabalhou com Buñuel, em "A Bela da Tarde" (67), e Ruiz, em "A Hipótese do Quadro Roubado" (78), entre outros filmes.
Raoul Coutard
É o principal fotógrafo do cinema moderno. Todos os primeiros filmes de Jean-Luc Godard --que revoluciona a linguagem cinematográfica nos anos 60-- tiveram sua fotografia assinada por Coutard, desde "Acossado" (59) a "Duas ou Três Coisas que Sei Dela" (67), passando pelos essenciais "Pierrot le Fou" (65) e "A Chinesa" (67).
Suas imagens são uma fonte de invenção permanente. Sabe-se que ele não apenas trazia à luz as mais improváveis criações imaginadas por Godard como foi responsável, na condição de fotógrafo, por várias das novidades que os filmes godardianos exibem.
É um gênio da câmera na mão, dos travellings rápidos, da captação instantânea e documental, do preto-e-branco moderno e da coloração pop. Tendo rompido com Godard, mais tarde aceitou assinar a extraordinária fotografia de "Passion", em que o diretor francês recria pinturas célebres.
Gunnar Fischer e Sven Nykvist
São os dois fotógrafos de Ingmar Bergman, responsáveis por materializar o cinema difícil e abstratizante do diretor sueco. Fischer seguiu Bergman na sua primeira fase, como em "Monica e o Desejo" (52), "Sétimo Selo" (56), "Sorrisos de uma Noite de Amor" (55) e "Morangos Silvestres" (58).
Nykvist é o mestre-fotógrafo de quase todo o Bergman maduro, como em "Persona" e "A Hora do Lobo" (67), "Gritos e Sussurros" (73), "A Flauta Mágica" (74) e "Fanny e Alexandre" (82). Em 86 foi à Rússia filmar o mais bergmaniano dos filmes de Andrej Tarkovski, "O Sacrifício" (86).
Gianni di Venanzo, Giuseppe Rotuno, Vittorio Storaro, Carlo di Palma e Tonino Delli Colli
Este quinteto é apenas uma pequena parte da notável turma de fotógrafos italianos que ajudaram a criar algumas das mais belas imagens do cinema.
Venanzo assina pelo menos dois marcos do filme moderno: "O Eclipse" (62), de Antonioni, e "Oito e Meio" (63), de Fellini. Também fotografou "As Amigas", "O Grito" (57) e "A Noite" (61), todos de Antonioni. A este diretor está ligada ainda a carreira de Carlo di Palma, fotógrafo de "O Deserto Vermelho" (64) e "Blow Up" (67).
Rotuno é o fotógrafo dos maravilhosos "Rocco e Seus Irmãos" (60), "O Leopardo" (63), de Visconti, "Roma" (72) e "Amarcord" (73), de Fellini.
Storaro é o olhar neoclassicista que acompanha Bernardo Bertolucci por vários filmes. Realizou as fotografias estupendas de "A Estratégia da Aranha" (69), "O Último Tango" (72), "Novecento" (76) e "O Último Imperador" (87). Também foi o fotógrafo de "Apocalipse Now" (79), de Francis Ford Coppola.
Delli Coli viabilizou os planos ousados de "Era uma Vez no Oeste" (68), de Sergio Leone, bem como os de "Gaviões e Passarinhos" (66), "Pocilga" (69) e "Salò" (75), de Pier Paolo Pasolini.
No cinema italiano, cumpre ainda lembrar ao menos três fotógrafos neo-realistas: Carlo Montuori ("Ladrões de Bicicleta", 48, de De Sica), Otello Martelli ("Paisà", 46, de Rossellini, "Arroz Amargo", 49, de Risi, "A Estrada da Vida", 54, "A Doce Vida", 60, de Fellini, entre outros) e Aldo Tonti ("Obsessão", 42, de Visconti, "Roma Cidade Aberta", 45, de Rossellini, e "As Noites de Cabíria", 57, de Fellini).
Tonti, aliás, viveu no Brasil, onde ajudou a criar os estúdios Maristela, em São Paulo, nos anos 50, tendo realizado a fotografia de "O Comprador de Fazendas" (51), de Alberto Pieralisi.
Lacunas
Certamente a lista acima está cheia de lacunas. Esquecemos de Billy Bitzer, o fotógrafo de Griffith na fundação do cinema, de Lee Garmes, que selou as formas do preto-e-branco nos filmes de Hawks ("Scarface", 32), Sternberg e King Vidor. Esquecemos dos formidáveis fotógrafos japoneses, como Kasuo Miyagawa ("Contos da Lua Vaga", 53, e "O Intendente Sansho", 54, de Mizoguchi). Deixamos de lado a maior parte dos contemporâneos. Ainda há muito a fazer pela honra e a memória dos fotógrafos no cinema.
E a fotografia brasileira?
Para quem assistiu alguns dos bons filmes brasileiros, de várias épocas, não há coisa mais irritante do que ouvir o comentário de que a "fotografia brasileira melhorou muito nos últimos anos".
É um raciocínio falso e preconceituoso. Talvez possamos dizer que o som no cinema brasileiro tenha passado por relevantes avanços técnicos, mas não que a fotografia "melhorou".
A fotografia brasileira no cinema sempre foi realizada com grande apuro nos principais filmes, desde a era muda, e tem já uma longa história para contar. História que é também a da procura de uma luz própria, que não repita as tonalidades nem os modelos dominantes no cinema hollywoodiano e europeu, embora busque neles inspiração.
Muito esquematicamente, pode-se dizer que a "luz brasileira" começa a ser definida pelo fotógrafo Edgar Brasil na época do cinema mudo (em filmes como "Sangue Mineiro", 29, de Humberto Mauro, e "Limite", 31, de Mário Peixoto), passa pelo olhar do inglês-brasileiro Chick Fowle. (em "O Cangaceiro", 52, de Lima Barreto, e "O Pagador de Promessas", 62, de Anselmo Duarte) e atinge sua expressão moderna nas imagens do Cinema Novo e do Cinema Marginal, nos anos 60 e 70.
É o tempo das experiências originais realizadas pelos fotógrafos Ricardo Aronovich (com "Os Fuzis", 63, de Ruy Guerra), Luiz Carlos Barreto (com "Vidas Secas", 63, de Nelson Pereira dos Santos), Mário Carneiro (com "O Padre e a Moça", 65, de Joaquim Pedro de Andrade) e Affonso Beato (com "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", 68, de Glauber Rocha).
Aronovich, depois de sua passagem pelo Brasil, mudou-se para a Europa, onde trabalhou com Alain Resnais na fotografia de "Providence" (77) e com Ettore Scola, em "Casanova e a Revolução" (80), dentre outros diretores.
Beato, excelente colorista, também seguiu carreira internacional, tendo realizado as imagens de alguns filmes de Almodóvar, como "A Flor do Meu Segredo" (95), "A Carne Trêmula" (97) e "Tudo Sobre Minha Mãe" (98).
Não se pode esquecer ainda de Dib Lufti ("Os Herdeiros", 69, de Cacá Diegues, e "A Lira do Delírio", 77, de Walter Lima Jr.), de Fernando Duarte ("Ganga Zumba", 63, de Cacá Diegues), de Thiago Veloso ("O Anjo Nasceu", 69, de Julio Bressane, e "Bang Bang", 70, de Andrea Tonnacci), de Lauro Escorel ("São Bernardo", 71, de Leon Hirzmann, e "Bye Bye Brasil", 79, de Cacá Diegues) e de Murilo Salles ("Cabaré Mineiro", 79, de Carlos Alberto Prates Correia, e "Eu te Amo", 80, de Arnaldo Jabor).
A lista não pára aqui. É longa e interessante a história da fotografia no cinema brasileiro. Mas é melhor contá-la mais tarde, em outra Pensata, quando o inverno parar de congelar os dedos deste colunista e o verão trouxer de volta a São Paulo a luz dos trópicos.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas. |
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