quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

CAYMMI NÃO FOI PARA MARACANGALHA

MARCELO TORRES

Quando seu Dorival começou a dizer que ia para Maracangalha – dizia e repetia mil vezes -, todo mundo perguntou se aquele lugar existia. Maracangalha talvez estivesse para o baiano Caymmi como Pasárgada estava para o pernambucano Bandeira.  Tanto é que Drummond, amigo dos dois, mas um mineiro desconfiado, logo fez uma paródia:

Já não vou a Maracangalha
Anália: para um pouco e lê-me
O melhor é ficar na praia
de Ipanema, Leblon e Leme.

Mas Maracangalha existia, sim - assim como Pasárgada existiu-, só não estava no mapa. Era um povoado de boias-frias, escondido, isolado de estradas, perdido entre engenhos de cana de açúcar no recôncavo baiano. Os moradores rejeitavam o termo Maracangalha, preferiam que o vilarejo fosse chamado de Cinco Rios, mesmo não sendo banhado por rio algum – era o nome da fábrica, em torno da qual vivia a pequena comunidade.

Resultado de imagem para fotos de dorival caymmi

De acordo com o Ipac -Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia - órgão da Secretaria Estadual de Cultura, “o engenho Maracangalha já existia desde 1757 localizado na Freguesia de Nossa Senhora do Monte Recôncavo, que depois passa à São Francisco do Conde até ser transformado em Usina Maracangalha, com produção de 80 toneladas, conforme registro de1898”.

Em meados do século XX houve a fusão de equipamentos das usinas da região, que passaram a ter o nome de Cinco Rios, hoje desativada e com seu prédio em ruínas. Seu apogeu e queda espelham a prosperidade e decadência dos engenhos, a própria história do ciclo açucareiro no país.

Maracangalha, o nome, nasceu da corruptela de “amarrar a cangalha”. Cangalha é uma espécie de canga colocada sobre o lombo de um burro ou jumento; na cangalha são pendurados dois cestos laterais que servem para o transporte de pequenas mercadorias, gêneros alimentícios e produtos de feira. Recusava-se o nome porque a expressão era associada a burro ou jumento, pois só se amarrava cangalha nesses animais de carga.

O sucesso estrondoso da música, que também era ouvida nos poucos aparelhos de rádio do lugarejo, acabou provocando a ‘ressurreição’ do nome. A palavra antes maldita, que ensejava piadas e anedotas, de repente virou motivo de orgulho, o maior orgulho da história do lugar, que agora virava música, uma música entoada por todos os brasileiros, que não se cansavam de cantar “eu vou pra Maracangalha, eu vou”.

Mas Caymmi, o mulato pescador, o pai de santo, o ‘pai da criança’, por incrível que pareça jamais botou os pés em Maracangalha, palavra que antes nunca tinha ouvido falar. Por trás da letra da canção há uma história, curiosa e pouco louvável, mas que é bom conhecer. Caymmi tinha um amigo, um certo Zezinho, que era casado mas pulava a cerca lá para as bandas de Itapagipe, no subúrbio ferroviário, onde mantinha uma segunda mulher e filhos.

Zezinho, para enganar a esposa, a cada mês inventava um telegrama para si mesmo, no qual registrava que a empresa o mandava comprar açúcar diretamente na Usina Cinco Rios. O malandro então, na maior cara de pau, dizia para a esposa: “Eu vou pra Maracangalha comprar açúcar”. A história nada nobre acabou inspirando Caymmi na composição da letra da canção.

Maracangalha existe - a chaminé sem chamas, as paredes em ruínas, a usina morta. O povoado sobrevive, com seu jardim em formato de violão, na pracinha cujo nome não poderia ser outro: Dorival Caymmi.  

Cinquenta anos após a música, a única coisa que aconteceu por lá foi a queda de um avião. Era um bimotor que transportava malotes de banco. Continham cinco milhões e meio de reais. O dinheiro que caiu do céu fez muita gente ir para Maracangalha, sem Anália e se Caymmi. Mas essa já é uma outra história.


COMENTÁRIO DO BLOGUEIRO
Algo sobre o mesmo assunto escrevi em 2008.

Tudo por causa de um LP

Cheguei para morar na Bahia em 1975.
Há, portanto, 33 anos que a mesma pergunta, com exagerada freqüência, vem bater á minha porta. “Porque veio morar aqui?” Uns com tom de profunda incredulidade. “Quem me dera, a mim, estar no hemisfério norte!”, outros com uma pontinha de suspeita. “Seria mais um Ronald Biggs?”.
Ninguém muda assim, do dia para o outro, de cultura, de clima, de idioma, de comportamento, sem motivo.
Hoje chegou a vez de desvendar o segredo.
Foi pela força de um LP. Um disco como se falava na época
.
Minha mãe, separada de meu pai, viveu durante 25 anos com um português, em Lisboa. Antonio Lopes Ribeiro era cineasta, crítico de cinema, poeta, escritor. Irrequieto, magro, nervoso, fazia sempre grandes discursos com muitos gestos, fumando um cigarro atrás do outro. Teve imensa responsabilidade na minha formação intelectual de adolescente.
Na sala reinava um magnífico aparelho de som, um Gründig. Rádio e toca-discos. Nele podíamos ouvir, não só os modernos 33 rotações, de vinil, mas também os velhos 78, em frágil bakelite. Havia de tudo, desde Chopin, Brahms, Chaliapine e Caruso até Amália, Piaf, Carmen Miranda e Dick Farney. Que bela voz tinha este Dick! Parecia veludo...
Antônio viajava muito. Uma vez veio do Brasil, onde encontrara cem personalidades do mundo do cinema e da música. Retornou a Lisboa com as malas entupidas de discos. Entre vários discos havia um, com uma caricatura mostrando um forte mulato de camisa listrada e chapéu de palha. Dorival Caymmi. Uma seta indicava “Maracangalha”.
As canções de Caymmi foram, para mim, uma viagem num mundo mágico, quente, doce e colorido. Alegre e poético também.

A vida dá suas voltas.
Meu tio Boris trabalhava para a FAO no Rio de Janeiro. Convidou-me para conhecer o carnaval. Na minha bagagem, uma carta de apresentação para Orígenes Lessa, autor do “O Feijão e o Sonho” e grande especialista em literatura de cordel. Sua companheira, Maria-Eduarda, era filha do conde Marim, algarvio com muito honra. Me desafiaram. “Vamos ao casamento do filho de Jorge Amado, em Salvador. Porque não vem com a gente?” Porque não? Fui.
Foi grande a emoção de encontrar, na casa do famoso escritor, o autor de “Eu vou para Maracangalha” e de tantas pérolas da música brasileira. Pouco mais fiz do que apertar timidamente sua mão e olhar para ele a cada minuto. Parecia, com seu cabelo grisalho, ter um brilho especial. Mas, naquela manhã, a verdadeira estrela da casa era Débora, a cobra de Paloma Amado.
Durante uns cinco dias, passeamos pela cidade, muitas vezes ciceroneados por um jovem poeta, muito mulherengo, Ildásio Tavares. Lembro de uma seresta nas areias do Abaeté, com velas plantadas em pequenas covas, ao abrigo da brisa. A beira da lagoa parecia um céu estrelado ao avesso. Tão inocentes, em 1971, aquelas areias...

A vida continua dando suas voltas.
Vi morar na Bahia em 1975 e descobri então que o colorido cartão postal também tinha um avesso, branco e preto, bastante mais fastidioso. Teria que preencher os espaços vazios com meus próprios pincéis para resistir a uma realidade que seria, ao princípio, dura e sem piedade. Aprendi a viver.
Em 1983 encontrei novamente o magnífico mulato, já de cabelo branco, novamente na casa da rua Alagoinhas. Novamente apertei, tímido, sua mão. Afinal o que é que um pobre imigrante simplório nas suas certezas de europeu banhado em Molière e Debussy, mas incapaz – até hoje – de sambar ou contar uma piada, teria ousado falar com um Dorival Caymmi?
Os anos passaram, fiz minha esta terra que tanto critico aqui, confesso, e que tanto defendo quando a atacam lá fora. Segui meu caminho por verdes vales e poeirentas caatingas, lamaçais e águas mornas. Sempre guardei na memória a honra de ter apertado, por duas vezes, a mão de um homem que podia levar um ano para fazer uma só canção, mas ofereceu ao mundo pérolas de mares fundos, onde belas sereias valsam com pescadores enamorados. 
Perdi o disco nas mudanças, até o Luis, amigo rastafari, amante de boa música e comerciante esclarecido do Pelourinho, sabendo de minha procura, me oferecer um velho exemplar, idêntico a minha lembrança de adolescente.

Hoje abro a televisão para enfrentar a triste noticia.
Dorival Caymmi acaba de morrer aos 94 anos, rodeado por uma maravilhosa família que consegue viver de música sem nunca ter caído nos fáceis sucessos descartáveis que agora poluem nossa sociedade consumista e desmemoriada.
Hei de ir, ainda este ano, mesmo sem Anália, a Maracangalha.
Se Deus quiser. 

Dimitri Ganzelevitch                                           Salvador, 16 de agosto de 2008;

2 comentários:

  1. Quem volta do interior do estado para Salvador, evidentemente pela única BR 324, já bem perto da capital uma placa velha, à direita, indica: MARACANGALHA.

    ResponderExcluir
  2. Gostei muito destas memórias, eu também apertei a mão de Caymi duas vezes, a primeira,na Reitoria, apresentado por Ildásio, a segunda,em Brotas,na festa do cônsul americano,apresentado por Harry Belafonte.

    ResponderExcluir

Related Posts with Thumbnails