MARCELO TORRES
Quando seu Dorival começou a dizer que ia para Maracangalha – dizia e repetia mil vezes -, todo mundo perguntou se aquele lugar existia. Maracangalha talvez estivesse para o baiano Caymmi como Pasárgada estava para o pernambucano Bandeira. Tanto é que Drummond, amigo dos dois, mas um mineiro desconfiado, logo fez uma paródia:
Já não vou a Maracangalha
Anália: para um pouco e lê-me
O melhor é ficar na praia
de Ipanema, Leblon e Leme.
Mas Maracangalha existia, sim - assim como Pasárgada existiu-, só não estava no mapa. Era um povoado de boias-frias, escondido, isolado de estradas, perdido entre engenhos de cana de açúcar no recôncavo baiano. Os moradores rejeitavam o termo Maracangalha, preferiam que o vilarejo fosse chamado de Cinco Rios, mesmo não sendo banhado por rio algum – era o nome da fábrica, em torno da qual vivia a pequena comunidade.
De acordo com o Ipac -Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia - órgão da Secretaria Estadual de Cultura, “o engenho Maracangalha já existia desde 1757 localizado na Freguesia de Nossa Senhora do Monte Recôncavo, que depois passa à São Francisco do Conde até ser transformado em Usina Maracangalha, com produção de 80 toneladas, conforme registro de1898”.
Em meados do século XX houve a fusão de equipamentos das usinas da região, que passaram a ter o nome de Cinco Rios, hoje desativada e com seu prédio em ruínas. Seu apogeu e queda espelham a prosperidade e decadência dos engenhos, a própria história do ciclo açucareiro no país.
Maracangalha, o nome, nasceu da corruptela de “amarrar a cangalha”. Cangalha é uma espécie de canga colocada sobre o lombo de um burro ou jumento; na cangalha são pendurados dois cestos laterais que servem para o transporte de pequenas mercadorias, gêneros alimentícios e produtos de feira. Recusava-se o nome porque a expressão era associada a burro ou jumento, pois só se amarrava cangalha nesses animais de carga.
O sucesso estrondoso da música, que também era ouvida nos poucos aparelhos de rádio do lugarejo, acabou provocando a ‘ressurreição’ do nome. A palavra antes maldita, que ensejava piadas e anedotas, de repente virou motivo de orgulho, o maior orgulho da história do lugar, que agora virava música, uma música entoada por todos os brasileiros, que não se cansavam de cantar “eu vou pra Maracangalha, eu vou”.
Mas Caymmi, o mulato pescador, o pai de santo, o ‘pai da criança’, por incrível que pareça jamais botou os pés em Maracangalha, palavra que antes nunca tinha ouvido falar. Por trás da letra da canção há uma história, curiosa e pouco louvável, mas que é bom conhecer. Caymmi tinha um amigo, um certo Zezinho, que era casado mas pulava a cerca lá para as bandas de Itapagipe, no subúrbio ferroviário, onde mantinha uma segunda mulher e filhos.
Zezinho, para enganar a esposa, a cada mês inventava um telegrama para si mesmo, no qual registrava que a empresa o mandava comprar açúcar diretamente na Usina Cinco Rios. O malandro então, na maior cara de pau, dizia para a esposa: “Eu vou pra Maracangalha comprar açúcar”. A história nada nobre acabou inspirando Caymmi na composição da letra da canção.
Maracangalha existe - a chaminé sem chamas, as paredes em ruínas, a usina morta. O povoado sobrevive, com seu jardim em formato de violão, na pracinha cujo nome não poderia ser outro: Dorival Caymmi.
Cinquenta anos após a música, a única coisa que aconteceu por lá foi a queda de um avião. Era um bimotor que transportava malotes de banco. Continham cinco milhões e meio de reais. O dinheiro que caiu do céu fez muita gente ir para Maracangalha, sem Anália e se Caymmi. Mas essa já é uma outra história.
Algo sobre o mesmo assunto escrevi em 2008.
Tudo por causa de um LP
Cheguei para
morar na Bahia em 1975.
Há, portanto,
33 anos que a mesma pergunta, com exagerada freqüência, vem bater á minha
porta. “Porque veio morar aqui?” Uns com tom de profunda incredulidade. “Quem
me dera, a mim, estar no hemisfério norte!”, outros com uma pontinha de
suspeita. “Seria mais um Ronald Biggs?”.
Ninguém muda
assim, do dia para o outro, de cultura, de clima, de idioma, de comportamento,
sem motivo.
Hoje chegou a
vez de desvendar o segredo.
Foi pela força
de um LP. Um disco como se falava na época
.
Minha mãe,
separada de meu pai, viveu durante 25 anos com um português, em Lisboa. Antonio
Lopes Ribeiro era cineasta, crítico de cinema, poeta,
escritor. Irrequieto, magro, nervoso, fazia sempre grandes discursos com muitos
gestos, fumando um cigarro atrás do outro. Teve imensa responsabilidade na
minha formação intelectual de adolescente.
Na sala reinava
um magnífico aparelho de som, um Gründig. Rádio e toca-discos. Nele podíamos
ouvir, não só os modernos 33 rotações, de vinil, mas também os velhos 78, em
frágil bakelite. Havia de tudo, desde Chopin, Brahms, Chaliapine e Caruso até
Amália, Piaf, Carmen Miranda e Dick Farney. Que bela voz tinha este Dick!
Parecia veludo...
Antônio viajava
muito. Uma vez veio do Brasil, onde encontrara cem personalidades do mundo do
cinema e da música. Retornou a Lisboa com as malas entupidas de discos. Entre vários discos havia
um, com uma caricatura mostrando um forte mulato de camisa listrada e chapéu de
palha. Dorival Caymmi. Uma seta indicava “Maracangalha”.
As canções de
Caymmi foram, para mim, uma viagem num mundo mágico, quente, doce e colorido.
Alegre e poético também.
A vida dá suas
voltas.
Meu tio Boris
trabalhava para a FAO no Rio de Janeiro. Convidou-me para conhecer o carnaval.
Na minha bagagem, uma carta de apresentação para Orígenes Lessa, autor do “O
Feijão e o Sonho” e grande especialista em literatura de cordel. Sua
companheira, Maria-Eduarda, era filha do conde Marim, algarvio com muito honra.
Me desafiaram. “Vamos ao casamento do filho de Jorge Amado, em Salvador. Porque
não vem com a gente?” Porque não? Fui.
Foi grande a
emoção de encontrar, na casa do famoso escritor, o autor de “Eu vou para
Maracangalha” e de tantas pérolas da música brasileira. Pouco mais fiz do que
apertar timidamente sua mão e olhar para ele a cada minuto. Parecia, com seu
cabelo grisalho, ter um brilho especial. Mas, naquela manhã, a verdadeira estrela
da casa era Débora, a cobra de Paloma Amado.
Durante uns
cinco dias, passeamos pela cidade, muitas vezes ciceroneados por um jovem
poeta, muito mulherengo, Ildásio Tavares. Lembro de uma seresta nas areias do
Abaeté, com velas plantadas em pequenas covas, ao abrigo da brisa. A beira da
lagoa parecia um céu estrelado ao avesso. Tão inocentes, em 1971, aquelas
areias...
A vida continua
dando suas voltas.
Vi morar na
Bahia em 1975 e descobri então que o colorido cartão postal também tinha um
avesso, branco e preto, bastante mais fastidioso. Teria que preencher os
espaços vazios com meus próprios pincéis para resistir a uma realidade que
seria, ao princípio, dura e sem piedade. Aprendi a viver.
Em 1983
encontrei novamente o magnífico mulato, já de cabelo branco, novamente na casa
da rua Alagoinhas. Novamente apertei, tímido, sua mão. Afinal o que é que um
pobre imigrante simplório nas suas certezas de europeu banhado em Molière e
Debussy, mas incapaz – até hoje – de sambar ou contar uma piada, teria ousado
falar com um Dorival Caymmi?
Os anos
passaram, fiz minha esta terra que tanto critico aqui, confesso, e que tanto
defendo quando a atacam lá fora. Segui meu caminho por verdes vales e
poeirentas caatingas, lamaçais e águas mornas. Sempre guardei na memória a
honra de ter apertado, por duas vezes, a mão de um homem que podia levar um ano
para fazer uma só canção, mas ofereceu ao mundo pérolas de mares fundos, onde
belas sereias valsam com pescadores enamorados.
Perdi o disco
nas mudanças, até o Luis, amigo rastafari, amante de boa música e comerciante
esclarecido do Pelourinho, sabendo de minha procura, me oferecer um velho
exemplar, idêntico a minha lembrança de adolescente.
Hoje abro a
televisão para enfrentar a triste noticia.
Dorival Caymmi
acaba de morrer aos 94 anos, rodeado por uma maravilhosa família que consegue
viver de música sem nunca ter caído nos fáceis sucessos descartáveis que agora
poluem nossa sociedade consumista e desmemoriada.
Hei de ir,
ainda este ano, mesmo sem Anália, a Maracangalha.
Se Deus
quiser.
Dimitri
Ganzelevitch
Salvador, 16 de agosto de 2008;
Quem volta do interior do estado para Salvador, evidentemente pela única BR 324, já bem perto da capital uma placa velha, à direita, indica: MARACANGALHA.
ResponderExcluirGostei muito destas memórias, eu também apertei a mão de Caymi duas vezes, a primeira,na Reitoria, apresentado por Ildásio, a segunda,em Brotas,na festa do cônsul americano,apresentado por Harry Belafonte.
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