Malu Fontes
Há exatos 17 anos o autor de novelas Sílvio de Abreu foi forçado pelas pesquisas qualitativas de audiência da Rede Globo a reescrever sua novela então no ar, Torre de Babel (1998). Para atender aos desejos do público que clamava pelo extermínio de um casal de lésbicas da trama, interpretado por Christiane Torloni e Sílvia Pfeiffer, Abreu simplesmente explodiu um edifício inteiro onde funcionava o shopping em torno do qual a novela girava. Na explosão, as lésbicas viraram pó e o público que pediu a morte do casal foi feliz para sempre.
Quase 20 anos depois, pode-se dizer, sim, que o olhar do país para a homossexualidade avançou muito, apesar dos horrores que ainda se vê cometidos diariamente em nome da homofobia. No entanto, a estreia, há uma semana, da telenovela Babilônia, de Gilberto Braga, Carlos Linhares e João Ximenes Braga, já serviu para mostrar que um grupo de telespectadores que se autoproclama como a clássica família brasileira (sabe Deus o que isso significa hoje) está disposto a aceitar muita coisa em telenovela, desde que não lhe venham, mesmo em 2015, com um casal de lésbicas idosas com beijos na boca.
Bastou Babilônia estrear com Fernanda Montenegro e Nathália Timberg formando um par romântico para que os autointitulados defensores da família brasileira entrassem em polvorosa, ao ponto de fazerem circular país afora um abaixo-assinado. A coisa seria engraçada se não fosse trágica. Desta vez não basta explodir Fernandona ou Natália, ou as duas, do roteiro da novela: querem nada menos que a Rede Globo retire a telenovela do ar. Claro que conservador raivoso, e em bando, de bobo não tem nada. A Frente Parlamentar em Defesa da Família Brasileira e a Frente Evangélica, embora digam que Babilônia é uma ameaça aos usos, costumes e tradições familiares por “trazer de forma impositiva outra forma de amar”, ou seja, o lesbianismo, acrescentam assassinato, ambição desmedida, traição, etc. Ora, em qual novela não há esses ingredientes? Então, é óbvio que o pomo da repulsa a Babilônia são mesmo os beijos na boca entre duas senhoras idosas, ricas e de fino trato.
Como é do feitio dos conservadores e ditadores, não basta impedir a si mesmo de fazer ou consumir determinadas coisas. O que querem é decidir pelo outro, impor o que o outro pode ou não fazer de sua vida, do seu consumo e do seu tempo. Se não podem, por conta de valores pessoais divinos e tidos como superiores aos dos outros, ver uma telenovela, Babilônia, quem lhes concedeu procuração para estender a proibição a todos os telespectadores, por via do impedimento da veiculação? E há sempre o controle remoto, os milhões de livros em busca de um leitor e, claro, Os 10 Mandamentos, a novela do bispo Macedo.
ABORTO
Telenovela pode até ter coisas esquisitas. Mas nada é mais esquisita que a cartela de critérios de tolerância do telespectador. O mesmo público que aceita tiro, mau-caratismo ao extremo e torce por vilões que deixam o diabo no chinelo, quer tirar do ar uma trama por mostrar duas mulheres idosas num casamento homossexual e acredita que mocinha ou bandida nunca aborta. Vejam os casos das personagens de Camila Pitanga e de Sophie Charlotte em Babilônia.
Telenovela pode até ter coisas esquisitas. Mas nada é mais esquisita que a cartela de critérios de tolerância do telespectador. O mesmo público que aceita tiro, mau-caratismo ao extremo e torce por vilões que deixam o diabo no chinelo, quer tirar do ar uma trama por mostrar duas mulheres idosas num casamento homossexual e acredita que mocinha ou bandida nunca aborta. Vejam os casos das personagens de Camila Pitanga e de Sophie Charlotte em Babilônia.
A primeira, mocinha da trama, sequer cogita um aborto quando se vê grávida de um mau-caráter desocupado e casado, tem um subemprego de auxiliar de garçonete, um pai assassinado, uma mãe desenganada numa fila de transplante de coração e é pobre de doer. Já Charlotte, a futura garota de programa, engravida de um zé ninguém em Dubai, o pai bom caráter a apoia a ter o filho e aborto, nem pensar. Até a mãe vilã dar-lhe uma surra tão branda que o feto vira sangue e escorre pelo ralo num banho de chuveiro e lágrimas. Essas cenas a família brasileira acha lindas, mesmo sabendo que são mentirosas.
* Malu Fontes é jornalista e professora de Jornalismo da Ufba
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