VITOR-HUGO RESENDE
Tudo começa logo cedo com uma alvorada de fogos, anunciando o festejo da santa mais popular da Bahia.
É preciso registrar que Santa Bárbara nasceu na Nicomédia, território que pertencia ao Império Romano e que atualmente corresponde à Turquia. Bárbara de Nicomédia nasceu no Século III numa família abastada, embora exista referência somente a seu pai, desconhecendo-se informações sobre sua mãe.
O fato interessante que compõe a vida dessa Santa reside na origem do seu nome, que faz menção a um povo bárbaro. Não custa lembrar que Bárbaro era um povo considerado não-civilizado, ou melhor com costumes diversos dos gregos e romanos.
Assim, é que podemos inferir que Santa Bárbara, mesmo sendo abastada e privada da convivência popular, possuía costumes que destoavam da alta sociedade na época, como por exemplo, adoção ao catolicismo, religião eminentemente das camadas populares.
Na festa baiana, realizada em 04 de dezembro, desde 1641, nas Ruas do Centro Histórico de Salvador não é diferente. Em que pese, o catolicismo na Bahia ser adotado pelas elites, a festa de Santa Bárbara se estabeleceu como uma festa popular.
Outrossim, é que mulheres pretas e geralmente de camadas menos favorecidas são as atrizes principais da festa. Num sol escaldante pré-veranico, muitas mulheres e homens que estão a acompanhá-las, além das autoridades religiosas têm vermelho nas vestes homenageando a santa na celebração.
Decerto que ainda persiste o sincretismo religioso, no qual os escravos associavam seus orixás aos santos católicos para preservarem sua liberdade de culto, então proibida pelos “senhores”.
Dessa forma é que a missa rezada em praça pública, em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, tolera, ou melhor, convive com os atabaques, instrumento básico das celebrações do candomblé, num fantástico entrosamento com os cânticos litúrgicos. Deve-se anotar que ao final da missa não vislumbrei a comunhão, mas me impressionei com a distribuição de acarajés pelas fieis da santa.
Breve parêntese precisa ser efetivado. O Acarajé já foi nosso tema de pesquisa (O Direito ao Acarajé 2012) e lá o exibi como Àkàrà(bolo feito da polpa do feijão fradinho, temperado com cebola e sal e frito no dendê), tendo ganhado no Brasil o sufixo je, que em ioruba significa comer. Atribuem na mitologia dos orixás, que Iansã, encomendou um acarajé para Xangô, num dia de festa no reino. Após degustar a iguaria Xangô começou a por fogo pela boca, restando a Iansã também provar do bolinho e ter a mesma consequência do marido. Entretanto, para a surpresa, os súditos do reino se impressionaram positivamente com o ocorrido, dando nome àquela comida de àkàrà que significa bola de fogo”.
Ainda sobre o bolinho, o Caderno do IPHAN, Ofício das Baianas, 2007 expõe que:
O acarajé também tem sentido religioso, é comida de santo nos terreiros de candomblé. É o bolinho de fogo ofertado puro, sem recheios, a Iansã e Xangô... e cheio de significados nos mitos e ritos do universo cultural afro-brasileiro.
Pela tradição que se afirmou ao longo de séculos quem faz o acarajé é a mulher, a filha de santo quando para uma obrigação, ou a baiana de acarajé quando para vender na rua.
No período colonial as mulheres, escravas ou libertas, preparavam acarajé e outras comidas e, à noite, com cestos ou tabuleiros na cabeça, saíam a vendê-los nas ruas de Salvador ou ofereciam aos santos e fiéis nas festas relacionadas ao candomblé.
Na benção final da missa, a autoridade celebrante utilizou ervas como guiné e pinhão roxo ministradas no candomblé e atribuídas a Iansã.
Portanto, é impositivo salientar que o ponto alto da festa é a convivência pacífica entre religiões distintas que estão a celebrar uma santa católica em comunhão com uma entidade do candomblé.
Outro mote de destaque da festa se encontra nas homenagens prestadas pelo Corpo de Bombeiros, mesmo após a Constituição Federal de 1988 estabelecer no art. 19, I, que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Destoando do preceito constitucional, a fé do povo atinge os Bombeiros que além de permitir a entrada da imagem da santa no Quartel da Baixa dos Sapateiros, acionam as sirenes dos caminhões, sem olvidar do foguetório acionado pela Corporação.
Após recalcitrar os comandos normativos, a procissão percorre mais 500 metros em direção ao Mercado de Santa Bárbara, onde é servido um caruru sendo ali, que a festa assume contornos, unicamente, profanos, imperando as bebidas alcoólicas e o samba de roda.
Um episódio que impressionou durante a observação foi a distribuição pela Escola de Medicina da UFBA de preservativos, lubrificantes e encarte de orientação sexual para os participantes da festa, acontecimento observado somente durante o carnaval de Salvador.
Não pode precisar se o ato tem tão somente caráter educativo, aproveitando-se para atingir um conglomerado de pessoas ou precisamente a busca pela prevenção de doenças sexualmente transmissíveis durante a festa profana que abre o ciclo de festas populares na Bahia.
Por fim, sobreleva dizer que a CF/1988 no Art. 215 instituiu que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Não nos surpreende que a Festa de Santa Bárbara tenha sido reconhecida como patrimônio imaterial da Bahia, por meio do Decreto Estadual nº 11.353/2008, mas o que estarrece é observar que as instâncias politicas não se atentam em formular mecanismos que incentivem a participação disseminando seu conhecimento, posto que cultura deve ser também uma forma de gerar riqueza.
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