terça-feira, 5 de agosto de 2014

A CULTURA DOS EDITAIS

Nas duas últimas décadas, a cultura do Edital tornou-se endêmica e domesticou os artistas na prática de realizar “projetos”. No campo da própria estética, o artista há muito é tido como mero “propositor” – o que certamente facilitou sua inserção nos Editais públicos, a menos que tenha sido o contrário… No livro Antropologia do Projeto, J-P. Boutinet[1] discorre acerca da pregnância do “projeto” na contemporaneidade; sobre ele tecemos algumas reflexões relativas à arte:
A proposição, como limitadora da experiência que busca antecipar, reduz a arte de certo modo a um problema de pertinência. Circunscrevendo a obra dentro de “conceitos” teóricos que a referenciam, corre ela o risco de se tornar mera relação epistemológica de inferências – ou seja, “eu consigo depreender desta obra o pensamento do filósofo Fulano de Tal, etc”. Essa identificação entre signo (elementos da própria obra) com um fundo teorético de validação significadora cria um circuito fechado, no qual a constatação “correta” encerra (e limita) o alcance da obra. Mesmo a “correção” destas induções pode facilmente incidir em arbitrariedades, cujas expressões mais comuns são do tipo “você pode pensar assim também…”, ou “toda interpretação é válida, o artista está apenas propondo uma reflexão sobre isso”, etc. Uma espécie de jogo erudito de decodificações.
Mas a forma que essa expressão tomou é que é mais problemática. Há décadas artistas têm produzido “projetos”, aparentemente sem se darem conta de que arte não se realiza por projeto. Este se configura quase como o decreto: determina previamente os condicionamentos futuros (indetermináveis) da produção criativa. O projeto é uma “intermediação” – adequação de algo para estar em conformidade com o disposto; ou em condições de assumir patamares previstos, mensuráveis, de atuação.
Um sintoma crítico da arte “sob medida” para os Editais é sua subsunção em uma figura formal tecnicista:
A cultura técnica dentro da qual evoluiu essa figura [o projeto] é justamente caracterizada por seu desejo de apropriação, de monopolização, de presença obsessiva; essa fragilidade do projeto se revela ainda mais evidente porque ela se tornou hoje, em nosso meio sociotécnico, uma referência incontornável. (BOUTINET, 2002)
O projeto incorpora a arte dentro da cultura política tecnocrata, conduzida desde a ordem mais abrangente e superestrutural – como as plataformas de ações partidárias, planos diretores e previsões orçamentárias dos governos, até os meios mais comezinhos da expressão do mercado, do tipo “descreva em seu currículo quais são suas intenções em relação a nossa empresa”.
A arte ministrada nas Academias atua assim sob um permanente paradoxo: marcada pelo pensamento pós-estruturalista ou pós-moderno, adapta-se, contudo, à disponibilidade de aparelhos e técnicas “modernos” por excelência, sintetizados na figura do “projeto” – figura de emulação da razão moderna que instrumentaliza e operacionaliza intenções e propósitos. A metodologia da arte, no entanto, é organizada por uma dinâmica própria, o tempo da convivência e permuta de experiências e aprendizado, tempo de cura, secagem, cristalização, etc. de seus materiais expressivos constituintes. A arte tradicional, moderna, cujos procedimentos e métodos foram duramente contestados pelo pós-modernismo (hipostasiada na figura da “técnica”), hoje nos prova a inaplicabilidade da arte quando submetida a projetos; ou melhor, a inoperância do projeto enquanto aparelhamento da artesania.
Sua metodologia não pode ser determinada por exigências prospectivas, uma vez que dependem das oscilações próprias do artista – ao invés de determinar de fora suas limitações, são justamente essas limitações que determinam o devir da própria expressão, conduzindo a práxis ao dispor seus recursos, orientá-los, moldá-los em conformidade com o processo dinâmico de interação do artista com eles; muito diferente de uma regulação prévia da própria disposição do artista – como ordenam o Edital.
Uma característica do projeto capaz de defini-lo é sua finalidade reguladora. Desta regulação depende o Estado ao impô-la sobre a produção artística como condição de financiamento. Não existe outra razão para existência dos Editais, senão a regulação das finalidades (e não da metodologia) das obras de arte. A metodologia, como dissemos,  a “operacionalização prática” da obra, é um dispositivo endógeno da produção, auto-determinada.
A submissão de uma obra a um Edital implica a adesão aos pressupostos reguladores, expressos já em sua própria forma – (revelando em si mesma a adesão pro forma): “os que assinam o presente Edital comprometem-se com a observância de seus dispositivos legais” – e consequente submissão à eleição do fórum decisório aos recursos interpostos (já os antecipando e regulando de antemão): “Comarca da Capital”, etc. Típico caso em que a aparência não pressupõe significado “de fundo”: nela mesma estão explícitas as coordenadas de sua operação. A finalidade da obra não pode estar em contradição com os dispositivos do Edital – quais sejam: regular a finalidade da obra. É um movimento endógeno, em direção a si mesmo. Nada pode fugir ao controle – não das indefinições da poiesis, mas dos dispositivos exteriores do Edital.
Noutras palavras, o artista não mais é submetido à imprecisão e à efemeridade da expressão plástica, à ambiguidade constitutiva da criação – o que o submete são as cláusulas do Edital, que o condicionam “de fora”. O funcionamento do Edital prevê e obriga a execução do trabalho, independentemente das intempéries e oscilações próprias do fazer artístico, interpondo o acaso da experimentação à regularidade dos cronogramas; pressupondo o consumo na planilha de gastos; determinando seus procedimentos no confinamento de relatórios parciais; delimitando, por fim, o trabalho final numa exposição pré-agendada, inclusive regulando a forma de sua publicidade.
Em resumo: é assim que a poética é subsumida aos dispositivos do poder. Se o trabalho artístico propõe a desconstrução de visões hegemônicas, utopias anarquistas, estratégias contra-cultura e contra a ordem estabelecida, ao passar pelas instâncias referendadas pelo Edital reinsere-se na lógica normativa do poder.
Só não vê, quem não fala
(AUTOR DESCONHECIDO)

BOUTINET, J. P. Antropologia do Projeto. Porto Alegre: Artmed, 2002. Textos: Prefácio e capítulo 1 “Liminar: do conceito ao paradigma”. 



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