Nas duas últimas décadas, a cultura do
Edital tornou-se endêmica e domesticou os artistas na prática de realizar
“projetos”. No campo da própria estética, o artista há muito é tido como mero
“propositor” – o que certamente facilitou sua inserção nos Editais públicos, a
menos que tenha sido o contrário… No livro Antropologia do Projeto, J-P.
Boutinet[1] discorre acerca da pregnância do “projeto” na contemporaneidade;
sobre ele tecemos algumas reflexões relativas à arte:
A proposição, como limitadora da experiência
que busca antecipar, reduz a arte de certo modo a um problema de pertinência.
Circunscrevendo a obra dentro de “conceitos” teóricos que a referenciam, corre
ela o risco de se tornar mera relação epistemológica de inferências – ou seja,
“eu consigo depreender desta obra o pensamento do filósofo Fulano de Tal, etc”.
Essa identificação entre signo (elementos da própria obra) com um fundo
teorético de validação significadora cria um circuito fechado, no qual a
constatação “correta” encerra (e limita) o alcance da obra. Mesmo a “correção”
destas induções pode facilmente incidir em arbitrariedades, cujas expressões
mais comuns são do tipo “você pode pensar assim também…”, ou “toda
interpretação é válida, o artista está apenas propondo uma reflexão sobre isso”,
etc. Uma espécie de jogo erudito de decodificações.
Mas a forma que essa expressão tomou é
que é mais problemática. Há décadas artistas têm produzido “projetos”,
aparentemente sem se darem conta de que arte não se realiza por projeto. Este
se configura quase como o decreto: determina previamente os
condicionamentos futuros (indetermináveis) da produção criativa. O projeto é
uma “intermediação” – adequação de algo para estar em conformidade com o
disposto; ou em condições de assumir patamares previstos, mensuráveis, de
atuação.
Um sintoma crítico da arte “sob
medida” para os Editais é sua subsunção em uma figura formal tecnicista:
A cultura técnica dentro da qual evoluiu
essa figura [o projeto] é justamente caracterizada por seu desejo de
apropriação, de monopolização, de presença obsessiva; essa fragilidade do
projeto se revela ainda mais evidente porque ela se tornou hoje, em nosso meio
sociotécnico, uma referência incontornável. (BOUTINET, 2002)
O projeto incorpora a arte dentro da
cultura política tecnocrata, conduzida desde a ordem mais abrangente e
superestrutural – como as plataformas de ações partidárias, planos diretores e
previsões orçamentárias dos governos, até os meios mais comezinhos da expressão
do mercado, do tipo “descreva em seu currículo quais são suas intenções em
relação a nossa empresa”.
A arte ministrada nas Academias atua
assim sob um permanente paradoxo: marcada pelo pensamento pós-estruturalista ou
pós-moderno, adapta-se, contudo, à disponibilidade de aparelhos e técnicas
“modernos” por excelência, sintetizados na figura do “projeto” – figura de
emulação da razão moderna que instrumentaliza e operacionaliza intenções e
propósitos. A metodologia da arte, no entanto, é organizada por uma
dinâmica própria, o tempo da convivência e permuta de experiências e
aprendizado, tempo de cura, secagem, cristalização, etc. de seus materiais
expressivos constituintes. A arte tradicional, moderna, cujos procedimentos e
métodos foram duramente contestados pelo pós-modernismo (hipostasiada na figura
da “técnica”), hoje nos prova a inaplicabilidade da arte quando submetida
a projetos; ou melhor, a inoperância do projeto enquanto aparelhamento da
artesania.
Sua metodologia não pode ser determinada
por exigências prospectivas, uma vez que dependem das oscilações próprias do
artista – ao invés de determinar de fora suas limitações, são justamente essas
limitações que determinam o devir da própria expressão, conduzindo a práxis ao
dispor seus recursos, orientá-los, moldá-los em conformidade com o processo dinâmico
de interação do artista com eles; muito diferente de uma regulação prévia da
própria disposição do artista – como ordenam o Edital.
Uma característica do projeto capaz de
defini-lo é sua finalidade reguladora. Desta regulação depende o Estado ao impô-la
sobre a produção artística como condição de financiamento. Não existe outra
razão para existência dos Editais, senão a regulação das finalidades (e não da
metodologia) das obras de arte. A metodologia, como dissemos, a
“operacionalização prática” da obra, é um dispositivo endógeno da produção,
auto-determinada.
A submissão de uma obra a um Edital
implica a adesão aos pressupostos reguladores, expressos já em sua própria
forma – (revelando em si mesma a adesão pro forma): “os que assinam o presente
Edital comprometem-se com a observância de seus dispositivos legais” – e
consequente submissão à eleição do fórum decisório aos recursos interpostos (já
os antecipando e regulando de antemão): “Comarca da Capital”, etc. Típico caso
em que a aparência não pressupõe significado “de fundo”: nela mesma estão
explícitas as coordenadas de sua operação. A finalidade da obra não pode estar
em contradição com os dispositivos do Edital – quais sejam: regular a
finalidade da obra. É um movimento endógeno, em direção a si mesmo. Nada pode
fugir ao controle – não das indefinições da poiesis, mas dos dispositivos
exteriores do Edital.
Noutras palavras, o artista não mais é
submetido à imprecisão e à efemeridade da expressão plástica, à ambiguidade
constitutiva da criação – o que o submete são as cláusulas do Edital, que o
condicionam “de fora”. O funcionamento do Edital prevê e obriga a execução do
trabalho, independentemente das intempéries e oscilações próprias do fazer
artístico, interpondo o acaso da experimentação à regularidade dos cronogramas;
pressupondo o consumo na planilha de gastos; determinando seus procedimentos no
confinamento de relatórios parciais; delimitando, por fim, o trabalho final
numa exposição pré-agendada, inclusive regulando a forma de sua publicidade.
Em resumo: é assim que a poética é
subsumida aos dispositivos do poder. Se o trabalho artístico propõe a
desconstrução de visões hegemônicas, utopias anarquistas, estratégias
contra-cultura e contra a ordem estabelecida, ao passar pelas instâncias referendadas
pelo Edital reinsere-se na lógica normativa do poder.
Só não vê, quem não fala
(AUTOR DESCONHECIDO)
BOUTINET, J. P. Antropologia do
Projeto. Porto Alegre: Artmed, 2002. Textos: Prefácio e capítulo 1 “Liminar: do
conceito ao paradigma”.
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