ABANDONO
Laboratório de ciências, com esqueletos ainda no plástico e caixas espalhadas pela sala
Laboratório de ciências, com esqueletos ainda no plástico e caixas espalhadas pela sala
A Escola Integral em Noronha virou ensino de fantasia. Por um ano, equipamentos ficaram sem uso dentro de caixas. Falta de estrutura fez alunos pedirem para programa ser encerrado
No improviso. Sem estrutura nem transparência. Foi assim que o ensino integral, um dos principais programas de educação do governo do Estado, desembarcou em Fernando de Noronha. As aulas, iniciadas no ano passado, eram tudo, menos integrais. Tanto na concepção quanto na execução. A carga horária da semana se resumia a apenas dois dias: terças e quintas-feiras. E o mais grave: as aulas práticas, razão de existência do projeto, simplesmente não existiam. Era sala de aula e teoria. De manhã e de tarde. Toda terça e toda quinta. Os equipamentos para os laboratórios do ensino integral chegaram, mas passaram o ano inteiro encaixotados. Tudo guardado sem que os alunos pudessem usar. Lupas, microscópios, reagentes, modelos de corpo humano, esqueletos, uma infinidade de descobertas e experiências frustradas. Era só cansaço e repetição. A ponto de os estudantes chegarem a pedir para que o programa fosse encerrado.
No dia 11 do mês passado, fim da manhã de uma quarta-feira, a reportagem entrou na Escola Arquipélago Fernando de Noronha e
fotografou o descaso e o desperdício de dinheiro público. Os laboratórios de química, biologia, matemática e informática mais pareciam depósitos. Caixas espalhadas por todos os cantos. Equipamentos no plástico, tomadas sem funcionar, aparelhos de ar condicionado sem instalação. Poucos dias antes, por iniciativa dos alunos, começou-se a fazer o que deveria ter sido realizado há um ano. Na falta de um técnico para organizar os laboratórios, os alunos resolveram arregaçar as mangas. Era isso ou enfrentar mais um ano de teoria. Mais um ano de escola integral de fantasia.
A desorganização e a sujeira em nada lembravam o lugar onde deveria se aprender, na prática, o que os livros ensinavam na sala de aula. No laboratório de ciências, o quadro-negro permanecia no chão por falta de um parafuso para afixálo na parede. Alguns microscópios e lupas já estavam quebrados. Os alunos não souberam dizer se já chegaram danificados ou se apresentaram defeitos por falta de uso.
Estudantes e professores se sentem de mãos atadas. “A gente tem as coisas, mas não pode utilizar, porque não sabe como. E, quando sabe, não pode mexer. Porque o material está nas caixas, no isopor”, desabafa a estudante Laila Lorena da Silva Campos, 16 anos. Por não saber manuseálos, os alunos têm medo de mexer nos equipamentos e quebrá-los. Também não há roupas nem acessórios adequados para o uso dos laboratórios. “Não tem luva, não tem jaleco. A gente conversou com o professor para ver a possibilidade de os alunos comprarem os jalecos. Não foi autorizado. Até isso é complicado. O jeito é esperar pela escola”, conta a aluna.
A ausência de estrutura na unidade é geral. Falta o mínimo. O básico para manter jovens o dia inteiro na escola. Os alunos têm que recorrer ao banheiro das crianças menores ou do laboratório de ciências para tomar banho. Também não há armários para guardar os objetos. Não há sequer refeitório. Meio-dia, colocam-se mesas
de plástico no pátio usado para atividades culturais, para que os estudantes possam almoçar. “A escola não estava preparada para receber o ensino integral. Nem no aspecto físico nem pedagógico. Na teoria, o projeto é excelente, mas aqui não funciona”, lamenta a professora Hanna Silva.
Em abril deste ano, a situação chegou ao limite. Os professores decidiram cruzar os braços por 24 horas. Cobravam equiparação salarial, realização de processo seletivo, melhores condições de trabalho. Sem solução, resolveram pegar um avião e bater na porta do secretário estadual de Educação, Anderson Gomes. Foi quando descobriram a existência de uma lista mal-assombrada, que havia sido encaminhada pela administração da ilha, com o nome dos professores que deveriam receber gratificação pelas atividades no ensino integral, em 2010 e este ano. Quando bateram o olho no papel, o susto. Na relação, estavam profissionais que nunca deram um dia de aula no integral, gente que nem morava mais na ilha e até professor morto.
O que mais revolta pais, alunos e professores é a imagem errada que é vendida fora da ilha. A imagem de uma escola perfeita, modelo de gestão e de ensino pedagógico. “Essa escola não existe. E, quando a gente vai reclamar, a direção diz que em outros lugares é assim também. Mas a gente não tem que seguir os erros das pessoas, e sim os acertos”, afirma a aluna Laila Lorena. Ela condena a falta de iniciativa dos próprios moradores de romper com essa escola de fachada. “Está faltando a gente se mobilizar. A comunidade inteira. Ir reclamar ao governador, mostrar o que está acontecendo.” Diante do desabafo da estudante, a reportagem quer saber:
– E se você pudesse falar para o governador, o que diria?
– Para ele dar uma olhada na nossa escola. Com urgência. Ele ia ver que não é o papel perfeito que mandam para lá [lá é o continente]. Faltam muitas coisas na ilha, principalmente na educação.
Considerando a lista de professores com nome-fantasma encaminhada à Secretaria de Educação, a perfeição, nesse caso, não existe nem no papel.
LISTA MAL ASSOMBRADA
A direção da Escola Arquipélago Fernando de Noronha encaminhou para a Secretaria Estadual de Educação uma relação dos professores que deveriam receber gratificação por estarem, desde o ano passado, dando aulas no ensino integral. Quase metade da lista estava irregular, com docentes que não participaram do programa. Até professor morto constava entre os beneficiados. Os erros se repetem também na lista de 2011.
Arnaldo Costa Leite Neto
Ensina de 5ª a 8ª série. Nunca trabalhou no ensino integral, mas seu nome consta nas listas de beneficiados em 2010 e 2011
Rodrigo Souto Maior Atuou apenas no 1º semestre. Em julho do ano passado, se afastou por motivo de doença
Gustavo Piccinini Não mora sequer em Noronha. Era professor de biologia, mas foi embora da ilha desde 2009
Carolina Lucena Atuou apenas no 1º semestre. Em julho do ano passado, se afastou por motivo de doença
José Dilson V. Cavalcanti Morreu de infarto no início do ano passado, antes mesmo de começar o ano letivo
Waldeck de Souza Júnior Só começou no 2º semestre de 2010, embora esteja na lista para receber pelo ano inteiro. Apesar de ter saído da escola, seu nome continua na relação deste ano
Monique Evelyn M da Silva Ensina de 5ª a 8ª série. Nunca trabalhou no ensino integral, mas seu nome consta nas listas de beneficiados em 2010 e 2011
Suzelli Dantas de Oliveira No ano passado não fez parte do ensino integral. Começou
a dar aulas no programa apenas neste ano
REPOSITOR DE PEÇAS
Pelo absurdo e inusitado da situação, o laboratório de informática da Escola Arquipélago de Fernando de Noronha revelou-se um ícone da maneira como a educação é tratada na ilha. O laboratório, na verdade, não existe mais. Virou um amontoado de carcaças, com gabinetes e monitores sucateados. O que mais choca é descobrir como ele chegou a esse ponto. Quando existiam e funcionavam, os computadores da escola eram usados como repositores de peças para osmicros da administração. É a lógica invertida. O jogo do contrário. Faltava uma memória em uma das máquinas do palácio, sede do governo? Ia-se na escola e retiravase a memória do computador dos alunos. O teclado do departamento de Gestão Insular quebrou? Vai até a escola e pega um teclado dos estudantes. De peça em peça, de reposição em reposição, o que era para ser um portal para aprender novas tecnologias transformou-se em depósito empoeirado. Agora, para usar o computador, os professores pedem que os alunos levem o seu laptop. Quem não tem se junta com o colega que tem.
De tão surpreendente, a revelação feita por estudantes, e confirmada por professores, denuncia uma negligência que desafia o bom senso. É o sucateamento com papel timbrado. Autorizado por quem é pago para evitar que ele aconteça. “O antigo laboratório funcionava, os alunos faziam a manutenção dos computadores no sábado. Deixava pronto para a semana. Só que, quando chegava segunda-feira, os micros começavam a apitar por falta de memória. Pessoas do governo passavam na escola e levavam as peças”, detalha o estudante do 2ª ano da Escola Arquipélago Antônio Carlos Francisco do Nascimento, 16 anos.
Uma reforma feita em 2009 sepultou de vez o que um dia foi chamado de laboratório de informática. O que era para melhorar, piorou. A direção decidiu mudar o laboratório de lugar e transferiu os computadores para uma sala menor, com infiltração, vazamento no telhado e sem as instalações elétricas necessárias. “Bastava terem melhorado a estrutura que já existia. Agora ficamos sem nada”, lamenta Antônio.
O descaso com os estudantes vai além dos muros da escola. No fim de abril deste ano, dois ônibus escolares novos chegaram à ilha. Pais e alunos comemoraram. Mas os veículos saíram do porto direto para a garagem. Não puderam ser usados porque a administração estava esperando o secretário estadual de Educação ir até Noronha para inaugurá-los. Na semana em que a reportagem estava no arquipélago, a Toyota velha que improvisa o transporte escolar quebrou mais uma vez. Os alunos ficaram no meio da rua, precisando pedir carona para chegar à escola. Nem assim os ônibus saíram da garagem. Eles só foram liberados no dia 18 do mês passado, quando outro secretário de Estado, não o de Educação, mas o de Ciência e Tecnologia, esteve na ilha. Finalmente os dois coletivos puderam ser “inaugurados”.
Jornal do Commercio - Recife
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