sábado, 6 de fevereiro de 2016

O DIA EM QUE ACHEI DRUMMOND NA RUA


De repente, Drummond!  Foi com um soluço de vida a rebentar - para usar palavras de uns seus versos. “Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava/ que rebentava daquelas páginas”.

Não, não era uma rua de Itabira, por onde eu caminhava. Nem era pelo calçadão de Copacabana, um outro seu lugar. Mas de pedra era o chão que eu palmilhava naquela hora.

O chão: pedras portuguesas brancas, ásperas, rústicas; estavam pregadas em cimento firme, porque, se fossem soltas, uma hora seriam arrancadas e atiradas sobre os homens em seus palácios.

Pisava eu o chão quente e seco da Praça dos Três Poderes, do Palácio dos Despachos, do Presidente, até o Palácio da Ceguinha, que o da Justiça. De repente, Drummond. Caído ao chão, sozinho. Ali, ao vento.  

Meu Deus, que er’aquilo no meio do meu caminho? Nunca imaginei. Já não estava morto, ele? Mas sim, era ele. Na minha frente. Ao alcance dos olhos, das mãos. Estes olhos, estas mãos. Aos meus pés.

- O conhaque me botou comovido feito o diabo – foi ele que falou? Ou fui eu?  - Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Eu não devia dizer, Drummond, mas essa lua, mas esse conhaque...

Olhei as mãos. Minhas mãos tecem um trabalho rude. Queria eu o sentimento do mundo. Drummond ali, e eu confuso, atrapalhado. Não sabia se me abaixava para puxá-lo ou se desviava, seguia meu caminho.


[...]

Preparo uma canção em que minha mãe se reconheça, todas as mães se reconheçam,
e que falem como dois olhos. Caminho por uma rua que passa em muitos países. Se não me vê, eu o vejo e saúdo, meu velho amigo. Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas. Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças.

[...]


Quando teria sido? Não sei, não sei. Só sei que o encontrei. E era ele mesmo: Drummond. Sim, Drummond. O passo de poeta. Caminhava por uma rua. A rua era como um rio, aquele rio que passava por muitos países, lembra?

Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. E devagar as janelas olhavam.  Eta vida besta, meu Deus.

Na mesma hora, ele engajado, intenso, pulsante. Mas não era nada romântico. Não queria cantar o mundo futuro. Nem ser o poeta do passado. Nada de cantar a musa. Nada de suspirar ao amanhecer, paisagem da janela, cartas suicidas. Nada de ser raptado por anjo. Nem torto. Nem querubim nem serafim.

Agora o tempo era sua matéria: o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Era preciso amar, e amar solenemente. Amar as palmas do deserto. Amar a entrega, tudo o que é entrega. Entrega e adoração.

Amar um chão de ferro. (Chão de Itabira?) Amar um vaso, podia ser um vaso sem flor. Amar uma ave - ave de rapina, que fosse. Amar o cru, o seco, o amargo e inóspito. O peito inerte. Amar uma rua, aquela rua.

Até que ele:
- Está sonhando?
- Eu?
- Olhe que a sopa esfria!
- Sopa?
- Neste país é proibido sonhar.

Então morremos, nós dois morremos. Morremos de rir. No sonho. E acordei rindo. E continuei sem entender.  Sonho... Sonho é um enigma, não é? Um mistério. Quando a gente conta é outra história. Ainda mais com Drummond no meio do caminho.

[...]


Agora ele estava ali, e me olhava; e não era sonho, não; não era loucura. Ele estava na minha frente, no meu caminho. Caído no meio da rua, o claro enigma, revelando sem-se-revelar - era um estar não-estar-estando.  

Drummond ali na frente, sob meus pés. E eu via Itabira ao fundo. As ruas de Itabira, as casas. Itabira, que tem noventa por cento de ferro nas calçadas. E oitenta por cento de ferro nas almas. Um chão de ferro.

Ao fundo eu via pedras, caminhos, calçamentos. Os montes, os minérios. Drummond no meio do caminho. Nunca imaginei. Pensava que nem mais existia aquele Drummond.


[...]

Diante da Máquina do Mundo, Drummond desdenhou e não colheu. Agora um Drummond caído, perdido, ao alcance dessas mãos que não sabem fazer poema. O que é achado não é roubado? Peguei-o.

Era já um Drummond pálido, esmaecido, desbotado. Um Drummond resignado, o rosto murcho, a calvície. Uma caricatura feita por ele mesmo. Drummond, uma nota de cinquenta cruzados novos. Deus seja louvado.

No outro lado da cédula ele estava sentado, no escritório, de costas. Concentrado, caneta à mão, papel sobre a mesa. Em torno dele um desenho trazia os calçadões de pedras portuguesas de Copacabana e ao centro um de seus poemas.

Drummond teve vida breve: nasceu com Sarney, 1989; morreu sob Collor, 1990. Cecília Meirelles, que era cem cruzados novos, valia duas notas de Drummond, que por sua vez valia cinquenta notas de Machado de Assis.

Naquela época, eu um menino, quando baixava para pegar um achado - que no nosso dizer não era roubado - logo aparecia um outro a gritar que viu primeiro e briga estava feita.

Hoje, duas décadas depois, quem aparece atrás é um homem todo de preto. Um guarda de bigode, botas e arma na cintura (um daqueles homens de poucos-raros amigos).

Ele viu primeiro. Eu entreguei a nota a ele.

Marcelo Torres 

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