Raul Moreira
Jornalista e cineasta
Na série Narcos, aquele repetido olhar de Wagner Moura nas vestes de um Pablo Escobar (1949 – 1993) em busca de um ideal de Colômbia todo seu, é atemporal e de alguma forma reflete as idiossincrasias do mundo latino-americano: em um continente no qual as suas veias continuam abertas e o realismo fantástico não explicou tudo, ainda hoje procuramos a parte que nos foi negada e que, talvez, só exista em nossos sonhos.
Independentemente de reproduzir certo contexto histórico da América Latina nas décadas de 70, 80 e 90 do século passado, a primeira temporada da série dirigida pelo brasileiro José Padilha nos remete a um exercício de memória capaz de nos dar indicações de quem simbolicamente fomos e, possivelmente, continuamos a ser, mas não temos certeza. Em outras palavras:Narcos nos oferece pistas da nossa complexidade lá atrás, a qual persiste e se faz ainda mais emblemática.
Porque, apesar dos governos de centro-esquerda perdurarem, advento que melhorou o conjunto de suas políticas sociais e reduziu a influência dos EUA, de certa forma a América Latina ainda preserva traços dos tempos do “ouro branco” de Escobar. E não apenas a América espanhola, mas, também, a América de língua portuguesa, onde habita o Brasil, país no qual vivem muitos “Pablos Escobares” enfurnados em favelas e periferias.
Certo que os nossos traficantes nem de longe ostentam a fama e a impressionante escalada do colombiano, inclusive sanguinária, mas, do precursor, do “príncipe”, herdaram a astúcia de sociabilizar com as comunidades que controlam através de arremedos de projetos sociais. Só faltam inventar de pagar a dívida externa do Brasil, como se arvorou Escobar em relação ao seu país no intuito de escapar de um processo de extradição para os EUA.
Sim, Escobar foi visto como uma espécie de Robin Hood pela gente pobre da Colômbia, ao mesmo tempo em que foi o agente da “peste negra” em forma de pó branco para os EUA: ao inundar e viciar o mundo ianque com milhares de quilos de cocaína durante quase três décadas, aos olhos dos truculentos governos republicanos de Ronald Reagan e de G.W. Bush “pai”, ele tornou-se mais perigoso e letal do que os velhos comunistas barbudos.
A série Narcos é contada a partir da perspectiva de um policial da agência antidrogas dos EUA (DEA, sigla em inglês) e, segundo historiadores colombianos, alguns episódios apresentados como reais, foram romanceados e não correspondem à realidade. No entanto, por mais que o maniqueísmo típico das produções americanas esteja presente, principalmente quando se trata de explorar realidades periféricas e seus estereotipados vilões, o personagem de Escobar acaba sendo um monstro simpático e por quem o espectador, em vários momentos, nutre certa compaixão.
Além do mais, o fato de que Escobar quebrou a lógica do arraigado poder “quatrocentão” colombiano, a quem desafiou e se sobrepôs, gerando uma crise institucional em seu país, o eleva a uma condição de revolucionário às avessas: embutida em sua psique, existiam vários sujeitos, daquele que matava a sangue frio e foi capaz de fazer explodir um avião de carreira, àquele que se comovia com o sofrimento dos menos afortunados.
Apesar das críticas, infundadas e superficiais no que se refere ao seu sotaque, é impossível não deixar de reconhecer o mérito de Wagner Moura ao se fazer Pablo Escobar. E, ao vê-lo ali, naqueles dez capítulos da primeira temporada, percebe-se, claramente, a incorporação, quando o personagem aparentemente se aproxima daquilo que supostamente entendíamos e imaginávamos do Escobar real: o ator baiano carrega a célula identitária do espírito de um tempo e, para ajudar, é um representante legítimo da ossatura latino-americana.
O Escobar de Wagner Moura, aliás, rivaliza, quando não supera, o Don Vito Corleone de Marlon Brando em O Poderoso Chefão(1972), de Francis Ford Coppola, como também o Tony Montana de Al Pacino em Scarface (1983), de Brian de Palma. Porque, ao contrário dos ilustres colegas, monstros sagrados, há, no “Pablito” do ator baiano uma composição mais naturalista, fator que o torna mais verossímil, sem aquele verniz que vem naturalmente embutido no DNA das interpretações hollywoodianas.
A verdade é que, em uma série na qual o objetivo era expor os dois lados, a partir da ótica dos vencedores, ainda que os ianques não possam se declarar vitoriosos na guerra com o narcotráfico, sobressai-se Pablo Escobar. E é deparando-se com a sua megalomania e os seus recalques, com a sua personalidade multifacetada, que o espectador é capaz de capturar a seiva de um mundo onde, infelizmente, o encanto e a violência parecem fadados a coexistirem, como se essa fosse a maldição da sua identidade. No final, fica a pergunta: será que nós, latino-americanos, não somos todos um pouco Pablo Escobar?
Publicado em A Tarde
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