A OPINIÃO DE Raul Moreira
Em uma época na qual se fala muito a respeito da chamada elite branca brasileira, que defende abertamente o impeachment da presidente Dilma Rousseff, importante se faz compreender como, de uma maneira geral, certo cinema mais à esquerda, nacional e internacional, lidou com questões relacionadas à natureza de tal extrato social, portador de grande riqueza e comumente conhecido como burguesia.
Vale ressaltar que, se o cinema nacional pós-retomada, na maioria das vezes, foi omisso ao ignorar o comportamento contraditório e muitas vezes golpista da burguesia tapuia, não indo fundo nas questões de classe, ainda a grande ferida da nação, lá atrás, no Brasil dos anos 60 e início dos 70 do século passado, deu-se o contrário: mesmo em plena ditadura militar, o Cinema Novo não se intimidou em dissecar a natureza paranoica da burguesia brasileira.
Certo que a efervescência daquele período era outra, por conta da divisão internacional de forças e das revoluções, políticas e culturais. E, quem se deparar com O Desafio (1965), de Paulo César Saraceni, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, O Bravo Guerreiro (1969), de Gustavo Dahl, Os Herdeiros (1970), de Cacá Diegues, vai perceber que os mesmos fantasmas de outrora perseguem o extrato burguês hoje em dia.
Se o Cinema Novo discutiu a questão burguesa e o seu apoio ao golpe militar, calando-se depois, uma vez que foi asfixiado pelo famigerado AI-5, em Cuba, aconteceu o contrário. Com a vitória de Fidel Castro, foi o segmento burguês quem deixou a ilha e refugiou-se em Miami, nos EUA, “êxodo” que é um dos panos de fundo de Memórias do Subdesenvolvimento (1968), aclamado filme de Tomás Gutiérrez Alea.
Baseado no romance homônimo de Edmundo Desnoes, Memórias do Subdesenvolvimento, misto de documentário e ficção, aborda os conflitos de um intelectual da alta classe média que se sente europeu e senhor da razão em uma Cuba pós-revolucionária. Sutil, Alea, através do personagem Sergio, consegue traduzir, sem maniqueísmos, o quanto é complexa a identidade do burguês, a qual, como deixa transparecer, habita em cada um de nós sem que muitas vezes tenhamos consciência.
Mais ao norte, o cinema italiano do pós-guerra foi mestre na arte de retratar o aburguesamento do país. Seu maior crítico foi Pier Paolo Pasolini, que deixou uma obra emblemática e na qual enquadra a cultura burguesa como um câncer que se generalizou na sociedade local. No glorificado Teorema (1968), Pasolini, marxista de carteirinha, parte de uma construção alegórica para evidenciar o drama do esgotamento da própria sociabilidade burguesa a partir da família, instrumentalizada, segundo ele, como elemento de afirmação capitalista.
Outro cineasta clássico que também explorou o aburguesamento da sociedade italiana após a Segunda Guerra Mundial foi Michelangelo Antonioni. Responsável pela trilogia da incomunicabilidade, formada pelos filmes A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962), o também autor de Blow-Up (1966), entre outros, de forma sutil apresentou ao mundo os novos ricos da velha Itália como alienados, vazios e sem alma.
O cineasta espanhol Luis Buñuel também foi um grande crítico da sociedade burguesa. Em 1972, na chamada fase francesa, o cineasta causou frisson com O Discreto Charme da Burguesia, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano seguinte. Em parceria com o roteirista Jean-Claude Carrière, Buñuel construiu uma trama cômica de caráter surrealista na qual expõe a superficialidade de um grupo de personagens bem situados economicamente que parecem viver em um mundo à parte.
Em O Discreto Charme da Burguesia, chama a atenção o personagem Dom Fernando Acosta, vivido pelo impagável Fernando Rey. Embaixador da fictícia república de Miranda, é impossível não associá-lo ao clichê do burguês desconfiável de um país ditatorial latino-americano nos anos 70, como era o Brasil, por exemplo. Mas, na França da Bastilha e que recebeu exilados políticos nos anos 60 e 70, como faz questão de realçar Buñuel no seu filme, muitas vezes tal burguês é visto com repulsa, justamente pela condição do seu país de origem.
Voltando ao presente, é difícil pensar que a burguesia tapuia abandone a pátria, como o fizeram os seus pares portugueses em 1974, após a Revolução dos Cravos, carregando baixelas de prata embaixo dos braços, as quais passaram a adornar apartamentos em Copacabana.
Mas, caso aconteça, principalmente se o destino for os EUA, a elite branca brasileira corre o risco de ser pigmentada. Para tanto, basta lembrar a recente premiação do Oscar, quando uma publicação ianque taxou os atores latino-americanos, espanhóis, iranianos e australianos de ‘não brancos’, inclusive Fernanda Montenegro, apesar de muitos possuírem pele clara e tezes caucasianas.
Encurralada, talvez não reste outra pátria à elite branca brasileira senão a Terra do Faz de Conta, no limite entre o Inferno e o Paraíso.
Publicado no Caderno 2 de A Tarde
Adoro esses diretores do chamado Cinema Novo brasileiro, movimento-cópia-esmaecida do cinema francês, que criticaram a burguesia nos anos de chumbo. Falaram de cátedra!
ResponderExcluirTodos eles bons burgueses, a ponto do Cacá Diegues haver filmado Joanna Francesa em seu estado natal, Alagoas, na cidade de União dos Palmares,na fazenda de quem? Do amigo proletário Collor!