Raul Moreira
Era prazeroso se deparar com Tuna Espinheira vociferando nos eventos cinematográficos, sempre de chapéu e com os seus inseparáveis óculos escuros, os quais escondiam olhos azuis que ao descoberto revelavam a curiosidade de um documentarista. Infelizmente, a província perdeu outro personagem de relevo e, a julgar pelo que se vislumbra no horizonte, não há reposição, o que a torna ainda mais pobre e previsível.
Não há glória na morte. Aliás, quase sempre ela é humilhante. No entanto, quando aquele que se vai deixa uma obra, mínima que seja, o sentido de finitude de certa forma acaba sendo redimensionado. E Tuna Espinheira, é impossível negar, deixou um espólio de respeito, constituído de curtas-metragens, médias, documentários e uma ficção de longa duração. Em quase todos os seus filmes, a Bahia e a sua gente serviu de pano de fundo, de inspiração, de objeto de pesquisa e investigação.
Na verdade, a vocação de Tuna Espinheira sempre foi o documentário. Tanto que, no seu único longa-metragem de ficção,Cascalho, adaptado do romance homônimo de Herberto Sales e exibido em concurso no Festival de Brasília em 2004, o resultado foi irregular. Ficou a lembrança da beleza imponente das lavras da Chapada Diamantina, capturada com maestria, ao lado do fotografo Luis Abramo.
No Brasil, muitas vezes, o sofrimento forja o espírito do cineasta. Com Tuna Espinheira não foi diferente. Em Cascalho, ele sofreu antes, durante e depois. Vale lembrar que a produção foi uma das primeiras da dita retomada do cinema baiano, quando, ao contrário de hoje, a máquina não estava azeitada e tudo era precário, ainda que não faltassem disposição e vontade de acertar.
Mesmo carregando a amargura diante do fato de que o seu filme não conseguiu ser distribuído regularmente, Tuna Espinheira manteve-se altivo e entregou-se a novos projetos, enfim, saiu em busca de capturar a realidade com as suas lentes: entre tantos nos últimos tempos, deixou incompleto um documentário a respeito do poeta Eurico Alves e, no ano passado, apresentou O Imaginário de Juraci Dória no Sertão: Veredas.
Agora, quando já é memória, o jogo se inverte e o cineasta passa a ser objeto de apreciação. Porque, a partir da percepção do que ele escolheu para retratar como documentarista e ficcionista, de alguma forma torna-se possível compreender a urgência de uma época, de como os irrequietos da Bahia buscavam resposta no passado para entender o presente e projetar o futuro.
Vale ressaltar que, apesar de normalmente se utilizar do documentário para flertar com temas e personagens históricos da Bahia, como se viu em Major Cosme de Farias – o último deus da mitologia baiana (1971), no média-metragem ficcional O cisne também morre (1982) Tuna Espinheira revela os últimos sopros de uma Salvador que ainda mantinha os encantos de província senhora de si, a partir de certo romantismo da boemia.
Não é à toa que o crítico André Setaro, falecido ano passado, ao evocar na sua memória O cisne também morre, do qual participou nas vestes de agente funerário, faz alusão justamente ao fato de que o filme tornou-se um documento importante para se compreender o quão Salvador se decompôs em poucas décadas, tornando-se uma cidade qualquer, inclusive no seu espírito.
Apesar do cabedal, pois era culto e cosmopolita – viveu na França e em Portugal –, quem conhecia o documentarista o considerava pessoa simples, ainda que invocado, direto, sem papas na língua, características que muitas vezes o tornavam temido. Mas, no fundo, Tuna, como simplesmente o chamavam, era um garimpeiro das almas alheias, alguém que buscava as gemas da existência dos seus retratados, com o objetivo de lapidá-las a seu modo e transformá-las em matéria cinematográfica.
Publicado no Caderno 2 de A Tarde.
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