MARCELO TORRES
Primeiro, ele disse: - Pensem no Natal, pensem nas criancinhas.
À época, eu tinha cinco anos e fiquei feliz pela lembrança, pois achava que ninguém pensava em mim, a começar por meu pai, que sumiu sem dar notícia.
Muito tempo depois, ele se lembra do tiro que deu às onze horas e onze minutos daquela noite de dezenove de novembro, diante de sessenta e seis mil pessoas.
- Eu me senti um pelotão de fuzilamento – foi o que ele disse agora, vinte e cinco natais depois.
Ao ouvi-lo, lembro do coronel Aureliano Buendía. Ele que, muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, haveria de recordar a tarde remota em que seu velho pai o levou para conhecer o gelo.
O menino Aureliano - é como eu estar vendo - ficou encantado só de ver o gelo. E não só o gelo - o imã, os espelhos, todas aquelas coisas mágicas levadas pelos ciganos.
Anos depois, virou coronel. Que promoveu trinta e duas revoluções armadas - e perdeu todas elas. Que sofreu nada menos que setenta e três emboscadas e exatos catorze atentados - e escapou de todos eles.
Ele chegou a engolir uma dose de estricnina capaz de matar um cavalo. E sobreviveu. O coronel Aureliano sobreviveu ao pelotão de fuzilamento.
Pelotão de fuzilamento...
Agora, quem fala em pelotão de fuzilamento é ele, o Rei Pelé, que antes pediu para pensarem no Natal e nas criancinhas.
Pelé. Que jogou quatro copas do mundo e venceu três delas. Que disputou mil, trezentos e sessenta e três partidas e fez mil, duzentos e oitenta e um gols. O milésimo foi no Maracanã, num Santos versus Vasco, ele contra o goleiro Andrada.
A partida que deveria marcar o milésimo gol estava empatada, 1 a 1, e já se encaminhava para o final – sem gol de Pelé.
Aos trinta e três do segundo tempo o juiz marcou uma penalidade máxima (até hoje há quem jure que o pênalti foi inventado). O Rei, então, se preparou para executar o tiro penal.
Primeiro, ele ficou de costas para a meta. Depois virou-se, correu para a bola - um olho na pelota, outro no goleiro -, fez uma paradinha e atirou no canto direito. Andrada ainda se esticou, até chegou a tocar na pelota, mas não teve como evitar - a bola foi morrer no fundo das redes.
O homem acabara de pisar a lua, e eu não sabia. No Brasil havia prisões, torturas, mortes – fui saber depois.
Então, naquela noite remota, Pelé pegou a pelota no fundo do gol e declarou:
- Pensem no Natal, pensem nas criancinhas.
Eu sabia porque ouvi meu irmão Augusto dizer. Pelé pediu para pensarem nas crianças. E meu irmão lembrou de mim. E eu ganhei meu primeiro presente, minha primeira bola, uma bola de plástico grande, maior até que minhas pernas.
Agora, duas décadas e meia depois, vejo Pelé dizer na televisão que não queria que fosse daquele jeito, porque pênalti é um lance covarde e uma glória daquela tinha que ser com a bola rolando, arrematando uma jogada bonita.
- Eu me senti um pelotão de fuzilamento.
Foi então que vi, de um lado, o Coronel Aureliano no alvo, na mira, pronto para ser fuzilado; de outro, o Rei Pelé, preparando-se para a execução do tiro penal, que ficaria marcado como o milésimo de mil e tantos gols do Rei do futebol.
Pelotão.
Quando criança - eu também lembro agora - me disseram que pelotão era apenas uma grande pelota. E quem me disse não foi meu pai, que até hoje não voltou – dizem apenas que é um desaparecido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário