BENIN
III
Médard e Epiphane são
atores. Descobriram o Brasil em maio passado levando, com meia dúzia de outros
jovens, uma peça de teatro sobre Pierre Verger, o fatumbi tão reverenciado por
aquelas bandas também. Uma negrada sadia, fascinada pela viagem, energia
vulcânica. Apresentaram um trabalho forte e sério, impregnado de simbólica
vodu. Na Bahia se sentiram em casa. Sua recepção carinhosa em Cotonu superaria
em muito o jantar que eu havia oferecido na varanda sobre a baía de todos os
orixás.
hotel de la plage... muito favorecido pela foto!
Vieram nos buscar no
Hotel de La Plage, pouco depois de voltarmos de Ouidah. Se estamos cansados ou
não, se ainda temos disponibilidade para esforços de comunicação, não
interessa. A programação desta noite promete ser agitada. Somos raptados em
dois moto-taxis, nova versão de Europa na garoupa do touro, rumo à beira-mar.
Entramos no pátio de uma escola primária. Estado precário. A área de recreio,
coberta de areia, tem o mesmo ar de desleixe que nos acompanha desde o
princípio da viagem. Papeis, pontas de cigarro, plásticos diversos contribuem a
entristecer um quadro já pouco sedutor. Canabrava é agora, aqui e em todo
lugar.
os tambores de cotonou
A escola está
fervilhando. Por uma porta entreaberta adivinhamos preparo de uma festa. Chegam
uns homens uniformizados de camisa branca e calça colorida, pesados
instrumentos de percussão. Graças a Xangô, ainda não entraram naquela de
lataria e plásticos que tanto modificou os sons da Bahia. Aparecem curiosos.
Crianças – um monte de crianças, sempre – e adultos, surgidos de todas as
esquinas da escola. Convidam-nos a sentar num longo banco à sombra deste resto
de sol insistente. Começa o toque, saem os dançarinos.
Estamos a alguns
milhares de quilômetros do Solar do Unhão. A força e o entusiasmo traduzem uma
necessidade de livrar-se do excesso de energia acumulada por estes jovens
geralmente sorridentes, mas reservados nas suas atitudes. Toda sociedade
arcaica acaba travada por um sem fim de tabus e códigos de comportamento, mesmo
nestes nem tão tristes trópicos.
Numa língua tão bela
quanto incompreensível, que penso ser fon, Médard canta enquanto dança. O canto
é uma mensagem. Reverencia nossa presença e lembra meu convite em Salvador.
Poderia haver mais nobre agradecimento? Pode, é só esperar um pouco.
As duas danças apresentadas
são parte de uma montagem teatral. Mas a carga de ancestralidade é tão grande
que não consigo comportar-me como mero espectador. Eles não representam. Vivem
um ritual. Desisto de tomar fotografias. Mais tarde, o feitiço será quebrado
por uma outra dança, mais lúdica, à qual somos convidados. Apesar de meu
desconfiômetro sempre ligado, não posso recusar. Resigno-me a fazer papel de
bobo. Nada mais constrangedor que gringo macaqueando a graça da cintura, a
desenvoltura dos ombros e a linguagem dos pés desta gente. Mas recusar não
seria grosseria? Mergulho sem hesitar no meu próprio ridículo. Nada como medir
suas limitações.
E lá vamos de novo
pelas ruelas deste miserável bairro, em nada diferente dos nossos alagados.
Aqui vivem os popós, tribo que ocupa o litoral desta fatia africana. Como do
outro lado do oceano, na moldura da indigência indigna, a droga convive com a
violência. Não sonhe aventurar-se sozinho por aqueles becos. Mas, meu
companheiro e eu, temos um bando de anjos protetores, negros atléticos e
respeitados pelos moradores. Além de artistas, são voluntários sociais.
Vez ou outra, distribuo
minhas bonequinhas baianas compradas horas antes de viajar, na ladeira do Pelô.
É paternalismo? É. E daí? Aqueles que sempre tiveram atitudes politicamente
corretas, que joguem o primeiro xingamento. Para mim, conta mais o sorriso
encantado destas molequinhas.
À porta da humilde casa
de Epiphane, uma velha prepara suas frituras. Minha tia. Ela vende acará. Pois
é. A mesma fritura, ao atravessar o Atlântico, ganhou o jê, engordou, abriu-se
a camarões e vatapás, mas é ainda nesta favela de Cotonu que comi os melhores
acarás destes últimos trinta anos. Quatro, um após o outro, sem remorso.
O minúsculo pátio da
casa de nosso anfitrião foi transformado em sala de banquete. Cadeiras, bancos
e sofá rodeiam uma longa mesa improvisada, com sobes e desces. Raul e eu temos
os melhores lugares. Minhas costas agradecem. Não é Versalhes? Com certeza. Mas
um calor humano como este, o Luís XIV nunca conheceu. Uma tigela cheia de água,
onde flutua uma enorme pedra de gelo, é passada de mão em mão, de boca em boca.
Trata-se claramente de um ritual de bem-vinda, recusar é impossível. Somos uma
boa dúzia a beber desta água. Adivinho bactérias, amebas, micróbios mil
dançando uma ciranda infernal. Bebo sem hesitar este desafio tropical. Gosto de
viver perigosamente.
Os peixes chegam em
belas travessas de pirex, coberto por um tempero de tomates e pimenta,
acompanhados pelo incontornável acaçá, cuja brancura contrasta com o colorido geral.
É usado como pão, na mão, para pegar os pedaços de peixe. Enquanto comemos,
vizinhos, familiares, vêm dar uma corujada nestes brasileiros branquelos e
perfumados, sorridentes e desajeitados. Mas como este pessoal é amável!...
Estou caindo de amores pelo povo inteiro deste Benin estranho e familiar. E
olhe que sem uma gota de álcool, tá?
E agora Epiphane? Não
tem café, não tem licor nem charuto, mas tem o bar da moda. E lá vamos pela
escuridão, enquadrados pelo exército protetor, até um grande espaço aberto,
rodeado por mais casebres. É o Aeroclube da área, mais convincente. Umas vinte
mesas são ocupadas por montes de garrafas de cerveja, papeis de amendoins e
outras cocas. E continua a escuridão geral!... À meia-luz não existe, nem o
tango. Aqui é quarto de luz e com muita sorte. O que não impede a animação. Por
quartos de segundos meu flash incendeia esta praça de pouca alimentação. Voltam
as primeiras impressões na chegada ao aeroporto, a orgia de cores. No final,
intrigado com a garçonete que fala inglês, porque vem da Nigéria, consigo pagar
a conta geral, aliviado enfim por retribuir uma hospitalidade como tive pouca
na minha longa vida.
Para retornar ao hotel
Médard e Epiphane conseguiram duas motos emprestadas. Elas driblam as
armadilhas da areia, da escuridão e do povo que corre de lado a outro se dar a
mínima para nossos cavalos de ferro, lata e borracha. (Segue).
Dimitri
Ganzelevitch
Salvador,
17 de julho de 2003
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