E SUA FUNÇÃO SOCIAL
Angelo Serpa
Em artigo anterior falei da legislação “de ponta”
que dispomos no Brasil e que em geral não é levada em consideração nos
processos de planejamento e gestão de nossas cidades. Essa legislação é uma
conquista dos movimentos sociais engajados nos anos 1980 em torno do ideário da
reforma urbana, culminando na elaboração de uma emenda popular e nos artigos
182 e 183 de nossa constituição.
Os referidos artigos foram regulamentados em 2001 pelo
Estatuto da Cidade, considerado um avanço jurídico no tocante à garantia de
participação nos processos de planejamento e gestão, explicitando as funções
sociais da cidade e da propriedade. Nossa carta magna protege e garante a
propriedade privada, mas lhe atribui uma função social de uso e ocupação, o que
em última instância é um princípio básico de combate à especulação imobiliária.
A urbanista Raquel Rolnik, relatora especial do
Conselho de Direitos Humanos da ONU, visitou as cidades-sede da Copa - não
esquecendo que o Rio também sediará as Olímpiadas - e constatou que os direitos
das milhares de famílias desapropriadas em função da instalação de
infraestrutura para os megaeventos não foram respeitados: as pessoas receberam
compensações insuficientes, não houve reassentamento em locais com condições melhores
ou equivalentes àquelas onde moravam antes da desapropriação ou, nos casos de
reassentamento em conjuntos do Minha Casa, Minha Vida, esse se deu em áreas
muito distantes dos locais originais de moradia.
Na Região Metropolitana do Recife, Rolnik sequer
conseguiu audiência com vereadores ou prefeitos dos municípios envolvidos. De
acordo com os órgãos municipais, as indenizações eram baixas porque os moradores
não tinham a escritura dos terrenos, contrariando o que dispõe a constituição
com relação ao uso capião urbano: mesmo sem o documento os moradores estavam
exercendo seu direito de propriedade sobre terrenos que de fato eram seus. No
Rio, a relatora viu tratores derrubando casas “com as coisas das pessoas
dentro”, sem respeito ao “direito à moradia para todos”.
As conquistas dos movimentos sociais foram na
prática revogadas com uma legislação de exceção para a realização do evento
esportivo. Finda a Copa, as leis de exceção ainda parecem vigorar nas
cidades-sede. Em Salvador, donos de serralherias questionam a desocupação de
imóveis na Ladeira da Conceição para viabilizar um projeto de requalificação que
busca transformar as oficinas em “residências artísticas”, com recursos do PAC.
Um dos moradores produz ferramentas e esculturas para o Candomblé desde sua
infância, outro serralheiro alega que tem recibo de compra e venda da
propriedade e está com o IPTU em dia. Agora, são pressionados pela SUCOM
municipal e pelo IPHAN federal a deixarem seus imóveis, sem garantia de
indenização ou transferência para outro local.
Na verdade, este projeto é exemplar para sublinhar
a falta de transparência e participação da população nos processos de decisão
sobre os destinosda cidade. Os serralheiros querem voltar às oficinas após a
requalificação: eles são inegavelmente um patrimônio imaterial da cidade que
deveria ser preservado com o reconhecimento do lugar como área de proteção
cultural e paisagística de Salvador.
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