quarta-feira, 23 de abril de 2014

UM BELO DE UM PALAVRÃO

Sexta retrasada, lendo uma velha e saborosa crônica de Carlos Heitor Cony, na qual ele narrava a biografia do seu bigode, fiquei tentado por uma palavra - que, vou adiantar, não era bigode.

E não é que, anteontem, ou seja, sete dias depois, uma sexta-feira santa, a palavrinha me aparece de novo! Agora, não mais na crônica de Cony, foi na voz de Ignácio de Loyola Brandão.

Faz-se necessário dizer que esses dois escritores de nomes pomposos, quando pequenos, foram coroinhas - meninos ajudantes de padre, o homem que prega a palavra de Deus.

Não é, porém, a palavra de Deus que quero falar (e qual é mesmo a palavra de Deus?), mas um palavrão que, como disse, li num texto de Cony e ouvi na palestra de Loyola.

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Autor de "Quase Memória", Cony disse que um dia olhou-se no espelho e viu que, com aquela cara, estaria condenado a passar o resto da vida com jeito de coroinha.

"Deixei então crescer o bigode e a concupiscência", escreveu ele, "sinceramente convencido de que jamais seria confundido com um ex-seminarista".

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Anteontem, na Bienal Brasil do Livro, na frente da Catedral, na Esplanada dos Ministérios, o ex-coroinha Loyola falava sobre a produção literária nos anos de chumbo e lembrava da obsessão dos militares pela "moral e bons costumes".

Então, ao ler alguns trechos das proibições impostas à imprensa, estava lá um artigo que condenava a concupiscência - eis aqui a palavra. Concupiscência!

E o ex-coroinha, que tem nome de santo e tudo, logo fez um parêntesis e disse "Adoro essa palavra: concupiscência - ela quer dizer tesão" - e seguiu na leitura.

Eu estava ali na primeira fila de cadeiras, junto com Lucas, e ri de leve, ri para mim mesmo, costurando fatos e lembranças.

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Loyola é autor de "O menino que vendia palavras", Prêmio Jabuti 2008 de melhor livro de ficção, e levamos (eu e Lucas) o nosso exemplar para ele autografar.

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Sete dias antes, lendo a crônica de Cony, assim que vi a palavra concupiscência, eu ri sozinho e Lucas chegou curioso - "Do que você tá rindo, papai?".

Disse-lhe que estava rindo do texto engraçado - que ele leu e não viu graça nenhuma -, mas no fundo eu ria porque lembrava do dia em que fui apresentado à concupiscência - não ao pecado, mas à palavra.

Foi no Junco, numa manhã de domingo, dia de missa. Eu, em meus dez ou onze anos, sentado com o velho Adauto, bem na bancada dianteira, quase aos pés do altar.

O padre Pinto - que dava pito público em qualquer cristão que atrapalhasse a sua palavra - ia celebrando a missa e todos nós o ouvíamos respeitosamente.

Lá pelas tantas, naquelas citações das antigas, ele mencionou duas expressões: a concupiscência da carne e a concupiscência dos olhos.

A palavra concupiscência, convenhamos, já é uma coisa cômica. E ainda me vem o padre e, querendo dar aquela ênfase ao sermão, fala pausada e silabicamente:

- .... A CON-CU-PIS-CÊN-CIA da carne... A CON-CU-PIS-CÊN-CIA do olhos...

Mesmo sem saber que diabo vinha a ser concupiscência - pior ainda a da carne e a dos olhos - eu tive um ataque de riso.

Vou confessar uma coisa: só não houve um vexame ainda maior porque, graças a Deus, eu estava com a bexiga e o estômago vazios.

Vocês sabem que, nesses ataques de riso nós fazemos a maior força do mundo para segurar a onda, mas não seguramos. E o pior: quanto mais alguém olha sério para você, mais você chora de rir.

Pois, então, quanto mais o padre Pinto me olhava - talvez já me condenando ao fogo dos infernos -, aí é que eu ria rios de lágrimas, e as enxugava na manga da camisa.

E como não era possível controlar o acesso de riso do filho, o velho, sem saber onde enfiar a cara de vergonha, ordenou que eu fosse brincar lá fora - não sem antes torcer  a minha já ardente orelha esquerda, a ponto de quase arrancá-la.

Depois da missa, já em casa, embora eu não tenha caído no relho nem ficado de castigo, como era de praxe, o que não me faltou foi esporro, sermão, pergunta.

- Você endoidou de vez, foi? É pecado rir dos outros! E mais ainda de um padre! Você matou seu pai de vergonha!

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Depois dos sermões do velho, da velha e até dos tios - pois uma coisa que nossos tios sabem fazer é dar queixa de nós aos nossos pais -, não tive coragem de falar da palavra, e perguntar o significado.

Tive medo de levar mais bronca, de azedar mais a situação, medo também de que eles não quisessem ou não soubessem responder.

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Foi o primo Bento Augusto que, no dia seguinte, me explicou o que era concupiscência. Mais velho dois anos, ele era coroinha (olha aí mais um coroinha) e sabia tudo de igreja, os dez mandamentos, os sete pecados capitais, os sete sacramentos, eu dizia que ele era uma "enciclopédia eclesiástica".

Bento Augusto presenciara a cena. Na hora, ele estava ao lado do padre, metido naquela roupa de ajudante de missa e eu ainda pude ver, de relance, que o olhar dele era de quem queria me matar.

- Que doidice foi aquela ontem, primo? - lá veio ele me passar sermão. - Você matou Tio Adauto de vergonha! Você estava rindo de quê?
- O padre falou uma palavra cômica.
- Que palavra?
- Concupiscência.
- Mas que graça tem a palavra?
- É que ele falou "con-cu-pis-cên-cia". Foi hilário aquele "con-cu"...
- Misericórdia, primo! Creindeuspai!
- Foi engraçado, ora!
- Primo, você precisa entrar no catecismo.
- Deus que me livre!
- Não fale uma besteira dessa! E não use o santo nome em vão! Que Deus, Nosso Senhor, perdoe seus pecados.
- Amém!

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Tempos depois, vejo que o querido primo Bento Augusto não seguiu a vocação sacerdotal, casou, é pai de família e empresário bem-sucedido, graças a Deus. O padre Pinto largou a batina, foi morar em outra cidade, casou com a Viúva, pois virou prefeito, e se amigou com uma mulher que lhe deu dois filhos.

E eu - sem ter feito o catecismo recomendado por Bento Augusto - continuo rindo da concupiscência, esse vocábulo exótico e sugestivo, com suas cinco sílabas, suas catorze letras e essa sonoridade perturbadora. É ou não é um belo de um palavrão? (marcelocronista@gmail.com)

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