terça-feira, 22 de abril de 2014

UM PAÍS TRADUZIDO NUMA GREVE


Malu Fontes

Independentemente do número de mortos e de roubos registrado em Salvador e na região metropolitana durante os dias de greve da Polícia Militar - 52 assassinatos da noite de terça-feira até o início da tarde de quinta -, há uma espécie de realidade que, infelizmente,  perdurará para além da paralisação. O que aconteceu durante a greve tem, no dia a dia, uma sombra de permanência na rotina das pessoas. Nada é mais tradutor dessa permanência que este dado: 46 pessoas foram assassinadas nos três primeiros dias após a greve. Embora a greve tenha ocorrido na Bahia e os efeitos mais trágicos tenham afetado, principalmente, Salvador e Feira de Santana, não se pode perder de vista um aspecto assustador: o que se sentiu e viu em três dias em Salvador foi uma espécie de versão ampliada da sensação de insegurança pública e medo sob a qual se vive em boa parte das cidades brasileiras.

Em maior ou menor escala, o país apresenta índices de assassinato acima dos registrados em países em guerra interna ou externa e uma avalanche de roubos, assaltos, sequestros relâmpago e agressões caracterizadas por níveis de perversidade às vezes não vistos nem mesmo em filmes de violência extrema. O que a greve da polícia escancarou senão uma demonstração concentrada dos crimes que já se vê no dia a dia de Salvador? Prova disso é o fato de, somente nas 24 horas entre as 19h de sábado e as 19h de domingo, sem greve, 10 pessoas terem sido assassinadas.

Outro elemento que traduziu a quantas anda o país, com sua gente ordeira, pacífica e cordial, foi o fenômeno dos saques a lojas, supermercados e mercadinhos. Diferentemente do que se poderia supor que o saqueador clássico, nessas ocasiões, seria o típico ladrão armado até os dentes levando eletroeletrônicos pelo seu valor de revenda ou, no máximo, pobres esfomeados levando o máximo que pudessem de alimentos, o que imagens mostravam eram pessoas aparentemente comuns fazendo coisas do arco da velha. Sim, havia o saqueador clássico que avançava com carros roubados sobre grades e portões abrindo o caminho. Mas, em seguida, vinham multidões que, além de dar pouca ou nenhuma importância a arroz, feijão, carne ou ovo, saíam com crianças, tios, pais e sobrinhos carregando caixas e caixas de cerveja, em alguns casos direto para porta-malas de carros estacionados em frente. Famílias saqueando cerveja, embora tenha acontecido durante a greve, nada tem a ver com greve.
 
Entrevistada por uma emissora de rádio, uma autoridade policial de Feira de Santana, cujo número de mortos, comparando-se a população de Salvador e a da cidade, foi mais alarmante que o da capital - 46 durante a greve -, apresentou uma tese que deve, no mínimo, ser considerada como uma boa hipótese para explicar por que a população e o vizinho, muitos com trabalho, renda e carteira assinada, aderiram à fila dos saqueadores. 

Segundo o policial, se todos os dias a população vê na TV autoridades, parlamentares e nomes de grandes costados saqueando milhões dos cofres público, no mínimo vai se perguntar por que deve se privar do impulso de fazer o mesmo com a cerveja no mercadinho da esquina.

E para fechar com chave de ouro a esquizofrenia do mundo dos veículos de comunicação: assim que acabou a greve, uma mesma emissora de TV que anunciava o acordo entre o governo e a polícia deu o break pros comerciais. O que surge na tela? ‘Cumpadi’ Washington e Beto Jamaica, em franco processo de ressurreição do É o Tchan, anunciando, às gargalhadas, a Micareta de Feira, festa que um minuto antes corria risco de ser cancelada. Isso sim, seria uma tragédia sem precedentes para muitos.

* Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Ufba.

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