Portugal foi, por longas décadas, refúgio político de muitas
eminências, excelências, altezas e majestades. Gravitando à volta destes astros,
um enxame de figuras de menor importância, salpicado por alguns fantasistas,
penetras e vigaristas de alta roda. Na curta rota
Lisboa-Estoril-Cascais-Sintra, viveu por gerações gente que fora e, às vezes
voltaria a ser, História. Porque e como fui introduzido nalguns círculos
fechados ao “vulgus pecum” é para mim ainda hoje pergunta sem resposta.
Nem, aliás, muito relevante.
Falo algumas línguas com marcado sotaque. Talvez seja este
sotaque mesmo que diverte quem se lembra de me mandar cartão para coquetéis e
jantares. E Deus sabe quanto me envaideço, confesso, em recebê-los. Desloco-me
por trem e ônibus, táxi só em dia de festa, mas meus ternos, poucos, são bem
cortados, no melhor alfaiate da capital, minhas gravatas de seda italiana, como
italianos meus sapatos, e um discreto cheiro de “Vetiver” de Caron me precede.
Quem me viu e quem me vê, heim!
Será em mesas à luz de vela, talheres de prata e porcelana
de Vista Alegre que encontrarei o único outro Dimitri do país.
Estamos falando das vésperas do 25 de Abril de 1974, a Revolução dos
Cravos, da qual não vou perder um pingo. Já estava na hora. Outro dia conto.
Dimitri Wolkonsky é russo, amável e charmoso, educado e divertido
e, também de carteira magra, pega trem e ônibus. Além do mais, é príncipe e das
melhores estirpes.
Conversamos longamente a cada encontro mundano. Sobre o quê?
Sobre nada, evidente. Você já viu alguém refazer o mundo em roda social? Seria
cortado sem retorno e para sempre de qualquer lista. Mas quando se tem vinte e
tantos anos, o que importa é se sentir considerado, pertencer a uma tribo,
mesmo se esta for escolha passageira.
Assim foi minha vida durante década e meia e não me
arrependo. Quem sabe observar, ouvir e lembrar, forja armadura para o que der e
vier.
A diferença entre os dois Dimitri é que um começa a andar na
vida e é movido a incertezas e determinação, outro já fez um longo caminho, mas
ainda não encontrou rumo ou porto seguro. As relações sociais - não vamos falar
de amigos, que é outro departamento - mencionam meu homônimo com certa condescendência,
apesar do respeito à bela e invisível coroa. Eu faço figura de combatente e uma
ponta de inconformismo, já mostrando o nariz, ajuda a criar diferenciada imagem.
Por enquanto batalho duro para pagar aluguel e o salário da preciosa Marcelina. O atavismo está provado. Se de alguém herdei a pose, foi
de minha avó paterna.
Numa bela tarde de Outono, chegou a Lisboa uma frágil e
sofisticada argentina. Compra um imenso apartamento – comprar sempre sai mais
em conta que alugar, para quem pode, é claro – nos altos do Parque Eduardo VII,
a dois passos do Hotel Ritz, o que você há de convir, não deixa de ser prático.
Como a conta bancária não é em pesos, mas em francos suíços, la cordobeza, que
declara “Mi família era peronista, lo que era muy mal visto por la sociedad”,
não terá grande dificuldade em freqüentar os endereços certos da conservadora
capital.
E o que pode acontecer, me diga, quando um cinqüentão
príncipe russo encontra em três jantares seguidos uma balzaquiana solitária
vestida nos bons costureiros franceses, ostentando colar de safiras a condizer com seus olhos?
Foi assim que, semanas depois, recebi um cartão em papel
verger, convite gravado para o coquetel, beberete se diz em português
acadêmico, de noivado dos pombinhos de asas cansadas. Vale a pena o
esclarecimento sobre o convite gravado. Basta passar discretamente o dedo sobre
o texto para sentir a saliência das letras, o que nunca acontecerá com a
impressão tipográfica. Elegância suprema, código mudo de uma sociedade em vias
de extinção.
O apartamento oferece vista privilegiada sobre o parque e, à
direita, o castelo São Jorge e a embocadura do Tejo. Ternos escuros, gravatas
de listras e vestidinhos pretos com o obrigatório colar de pérolas. Geralmente
finas.
O champagne é francês, o caviar iraniano e o salmão veio
especialmente da Noruega.
Como sempre nestas ocasiões, encontrar o Tout-Lisbonne é
encarado com a maior naturalidade. Estranha-se que a marquesa de Cadaval ou o
visconde de Soveral ainda não tenham chegado. Ah! Chegam juntos. “Nos
encontramos no elevador, não é divertido?!”. Só para evitar comentários nesta
sociedade onde divorciar é ilegal, mas onde todo o mundo... Bem isto são outros
quinhentos.
De repente, a porta abre, sente-se um breve e sutil silêncio,
logo a seguir o tom das conversas fica como fervendo. Acaba de entrar um homem
alto, magro, os olhos curiosamente rasgados, elegante, desta elegância de quem
tem a noção de ser sempre o centro de todas as atenções. Ninguém sabe mais como
se comportar. Continuar as conversas naturalmente? Correr e entrar na fila para
ser apresentado? Fingir que é íntimo? Declarar de voz alta que já recebeu o
convite para o casamento da filha dele?
Verdade é que não sei como, talvez a dona da casa me tenha
empurrado na direção do ilustre visitante, mas de repente estou na sua frente.
Me dá uma mão grande e forte. Olha para mim como se quisesse saber tudo a meu
respeito – eu que tenho tão pouco para contar -
e trocamos umas banalidades cuja memória a História não gravará.
Foi assim que conheci Juscelino Kubitschek.
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